Um final de ano cheio!

2011 foi ano bastante movimento em minha vida. Concluí o mestrado, trabalhei como nunca, tanto no CAPSad Primavera, em Cabedelo, quanto nas dezenas de consultorias e minicursos que ministrei ao longo do ano. Ficou difícil manter este sitizinho atualizado.
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Onda andam os redutores?

Em julho de 2009, escrevi um e-mail para uma lista de discussões sobre a Reforma Psiquiátrica reclamando de uma cartilha sobre Redução de Danos produzida pela pessoal do PROAD/UNIFESP (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo). Minha crítica ia no sentido de que a referida cartilha fala sobre redutores de danos apenas no capítulo destinado às ações junto a usuários de drogas injetáveis, podendo passar a falsa ideia de que estes trabalhadores só teriam contribuições junto a esta população específica de usuários de drogas.

Até aí, tudo bem... O problema foi que eu peguei pesado na escrita, descambando para o desrespeito, atitude nada adequada, ainda mais em se tratando do PROAD, uma instituição série, com imensas contribuições à construção de tecnologias de cuidado inovadoras e comprometidas com o SUS e a Reforma Psdiquiátrica.

Mas o "limão" do texto atrapalhado acabou gerando uma boa "limonada": de minha parte, um escrito/elogio ao PROAD; da parte de Marcelo Niel, psiquiatra e pesquisador do PROAD, um texto sobre a importância do trabalho dos redutores de danos. Aproveito para reproduzir abaixo o texto do Marcelo, em homenagem à Elisandra e ao Tuca, redutores de danos de Pelotas (RS), de quem partiram os esforços que resultam na realização do encontro "FAZENDO MOVIMENTO ENTRE OS AGENTES REDUTORES DE DANOS", agendado para os dias 23 e 24 de novembro, e que tem por objetivo justamente a discussão sobre a atual situação dos redutores de danos no estado do Rio Grande do Sul.

Oxalá que o exemplo dos amigos de Pelotes provoque ações semelhantes em todo o Brasil. Por enquanto, ficamos com a carta de Marcelo Niel.

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POR ONDE ANDAM OS REDUTORES?

Nossa! Essa “lavação de roupa” positivíssima acabou servindo de “start” para discutirmos um aspecto muito importante sobre a Redução de Danos: por onde andam os redutores de danos?

No ano de 2002 iniciei meu Mestrado na UNIFESP e comecei a participar de diversos encontros ligados ao movimento de RD. De 2002 a 2005, pude observar a ascensão do movimento, a ampliação de PRDs por todo o Brasil, a organização e sistematização das atividades dos Redutores e a “ameaça” (ameaça “boa”, lógico) da profissionalização do Redutor de Danos... Tive a oportunidade de participar de oficinas, cursos e treinamentos para Redutores de Danos, além de levar os conceitos e fundamentos da RD em cursos, palestras e congressos onde ela era ainda desconhecida até mesmo indesejada...Nesse período tivemos a reativação do PRD no PROAD, com treinamento de redutores para o campo e financiamento da Elton John AIDS Foundation, que custeava o trabalho deles... Mas infelizmente, tenho observado um movimento diferente: na ocasião da elaboração da Cartilha financiada pelo MS, verificamos que vários PRDs não existem mais, o financiamento que custeava o trabalho de nossos Redutores acabou e, de várias formas e em vários lugares, sinto que tem havido uma espécie de “enfraquecimento” do movimento.

Não têm mais chegado UDIs no PROAD para tratamento, encaminhados por Redutores de vários PRDs, não tenho sido procurado para “arranjar tratamento” para usuários acessados no campo... O que será que ocorreu? Será que a RD saiu de moda? Será que os Redutores estão entrando em extinção? Não acredito que uma estratégia tão importante no cuidado aos usuários de drogas possa ser abandonada, esquecida, tornar-se obsoleta ainda tão jovem... Mas algo estranho está acontecendo...
Tenho várias teorias para esse fenômeno: uma delas é que acho que muitos dos “leões” da RD, que brigaram, que lutaram, que sofreram pela causa, cresceram, cresceram tanto que até muitos deles viraram “políticos”... secretários de não sei o que, acessores de não sei o que lá...E ainda que muitos deles estejam ativamente contribuindo para a RD lá do seu “Olimpo”, muitos podem ter sido “sufocados” pelas burocracias, pelos papéis, pelas reuniões intermináveis....E com o afastamento dos “leões”, num tempo em os discípulos ainda não superaram os mestres, o movimento pode ter enfraquecido....

Não acho que a RD já se tornou tão forte e tão difundida pelo Brasil a ponto de não precisarmos mais brigar por ela. Diversos profissionais de saúde, mesmo atuantes na área de saúde mental e até no tratamento de dependentes de drogas sequer conhecem os conceitos fundamentais da RD. Tem gente que ainda pensa que a RD serve para incentivar o consumo de drogas... Ou seja: muito ainda tem que ser feito.

Mas para que seja feito direito, acredito que temos que resgatar a figura do Redutor que conheci outrora: briguento, destemido, idealista, amante da causa. Ao mesmo tempo que porte esses atributos, tem que ter remuneração adequada, respeito, profissionalismo, suporte e respaldo técnico, treinamento...

Bem, acho que é isso. Sou um amante confesso da RD. Admiro o trabalho árduo dos redutores, a luta dos PRDs e assisti de muito perto a trajetória de diversos UDIs que pararam de injetar-se, passaram a usar drogas “menos pesadas” e conseguiram deixar ou controlar o uso... Pacientes do PROAD que, pela orientação dos Redutores, trocaram crack por maconha, cachaça por cerveja...

E à medida que desaparecem os Redutores, proliferam-se os “conselheiros” de Comunidades Terapêuticas hipócritas, que encarceram e maltratam nossos pacientes... Realmente dá muito mais dinheiro e “status” ser conselheiro do que Redutor...

Não podemos deixar que a RD esmoreça, precisamos nos unir, expandir, divulgar e também produzir “ciência” com as nossas experiências, para consolidar as práticas da RD junto à comunidade científica e também, seguindo o propósito da nossa cartilha, formar e informar os profissionais de saúde sobre essa estratégia tão ímpar...

Abraços a todos,
Marcelo Niel
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Uma semana em BH e Maceió

Este ano de 2011 tem sido extremamente generoso comigo, no que tange às possibilidades de visitar diferentes cidades do Brasil, para a realização de atividades de formação com trabalhadores sociais (especialmente das redes de Saúde e Assistência Social). Nesta semana que passou, estive conversando sobre o cuidado dirigido a pessoas que usam drogas nas cidades de Belo Horizonte e Maceió.

Em BH, a conversa foi com trabalhadores do CERSAMad (em Minas, os CAPS são chamados de "CERSAM"), de Centros de Convivência (Belo Horizonte possui 9 destes serviços!), do Consultório de Rua, e de diversos outros serviços das redes de Saúde e Assistência Social. Foi na terça-feira, véspera do feriado do dia 2 de novembro. Na parte da manhã, conversamos um pouco sobre a história do cuidado em saúde dirigido a pessoas que usam drogas, desde a Grécia até os dias de hoje, passando pela transformação dos leprosários em manicômios, instituições que sempre tiveram lugar reservado para os bêbados de rua, e mais recentemente, para usuários de drogas tornadas ilícitas. Na parte da tarde, realizamos uma oficina de produção de instrumentos de uso de crack. A ideia era transportamo-nos para o universo das cenas de uso de crack, buscando aproximar os presentes desta realidade, de modo a conhecer as técnicas de uso, e as possíveis formas de redução de danos associados a estas diferentes formas de se usar crack. A foto que ilustra este posto mostra um pouco desta oficina.

Nesta sexta-feira, estive na cidade de Maceió, para atividade de lançamento do Centro Regional de Referência em Crack, Álcool e Outras Drogas de Alagoas, que está sob a coordenação da Professora Jorgina Sales, da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas. Foram dois turnos de conversa com os participantes, tendo como temas o próprio conceito de droga, a partir de múltiplas aproximações (história, sociologia, antropologia, criminologia, farmacologia...), e também uma análise de conjuntura no que tange aos rumos das discussões e das políticas sobre drogas efetivadas no Brasil contemporâneo, especialmente ao longo deste ano de 2011. Neste ponto, discutimos mais profundamente questões que eu já trouxe aqui para o blog, neste POST.

Com esta, já são 4 as atividades em colaboração com CRR's. Na próxima semana, estarei novamente em Pelotas, no Rio Grande do Sul.
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Setembro e outubro


Faz um bom tempo que não posto nada por aqui. A vida tem sido bastante corrida, e o tempo pra manter este espaço atualizado tem sido pequeno. Aproveito esta pausa nas leituras prearatórias à seleção pro doutorado, pra compartilhar algumas novidades destas últimas semanas.

Em setembro, em Juazeiro, para uma aula do Centro Regional de Referência sobre crack, álcool e outras drogas. Aliás, tenho sido chamado a contribuir com CRR's em diversos locais do Brasil, o que tem me deixado bastante feliz. Foi o caso de Betim (MG), e também em Pelotas (RS), pra onde retorno em novembro, pra mais uma atividade.

Ainda em setembro, junto com os amigos Bené (Ruartes) e Diego (Consultório de Rua), coordenei uma oficina de Redução de Danos, à convite do Núcleo Paraibano da ABRAPSO. A atividade foi chamada "No caminho é que se vê a areia melhor pra ficar". A ideia era tentar construir um ambiente que pudesse nos remeter às cenas de uso de crack, de modo a compreender melhor as formas de uso, problematizando os danos relacionados a cada uma.

Entre o fim de setembro e o início de outubro, estive envolvido por duas semanas com o módulo de Redução de Danos da Pós Graduação em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco). Foi uma experiência fantástica, pela qual eu nunca tinha passado. Já tinha dado aulas para pós, para graduação, mas sempre coisas pontuais; também já contribuí com a formação de equipes de saúde, e já ministrei minicursos, mas nunca tinha dado aula sobre Redução de Danos ao longo de duas semanas, para uma mesma turma, tendo à disposição 4 horas diárias e uma turma interssada, instigada... Foi realmente muito bom para mim, e eu espero que tenha sido também para os estudantes.

Nos dias 10 e 11 de setembro eu estive em São Luís do Maranhão, para dois dias de atividades promovidas pela Rede Amiga da Criança, sobre o uso de drogas entre crianças e adolescentes. Os presentes eram trabalhadores de saúde e da assistência social, além de muitos ativistas ligados à ONG's e movimentos sociais.

Outra novidade diz repeito ao meu desligamento da pesquisa multicêntrica sobre uso de crack, organizada pela Fiocruz e financiada pela SENAD. Diante de minha decisão de preparação para a seleção do doutorado, e também do atraso no cronograma dos trabalhos da própria pesquisa, tornou-se complicado honrar os compromissos assumidos.

Por fim, a melhor de todas as novidades: o CAPSad Primavera, de Cabedelo, serviço em que eu trabalho já há dois anos, está de casa nova! Hoje terminamos a mudança, e agora é só organizar as coisas e retomar as atividades no novo endereço: uma casa ampla, com uma linda mangueira no pátio (ideal pras rodas do grupo Oficina de Samba), várias salas pra múltiplas atividades, acomodações mais amplas... Se já era um luxo trabalhar com colegas como os que compõem a equipe, e com a população de Cabedelo, agora então...

[ ]s!
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Sete Pontos Acerca do Debate das Comunidades Terapêuticas

O texto abaixo foi escrito por Marcelo Kimati, psiquiatra, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, consultor em Saúde Mental no Rio Grande do Norte e supervisor clínico-institucional. Está publicado no blog Saude com Dilma. Nele, Marcelo sistematiza o debate em torno do financiamento público das comunidades terapêuticas e sua inclusão na rede de assistência a pessoas que usam álcool e outras drogas, em sete pontos: legitimidade das CT's; regulação das vagas; impacto na rede e projetos terapêuticos; expansão da rede; regulamentação da ANVISA; impacto na política de saúde mental.

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Após o debate de sábado com o Coordenador de Saúde Mental do MS entendo que há muitos motivos para preocupações com o tema e gostaria de apontar para alguns deles.
A discussão acerca da incorporação das comunidades terapêuticas entre as estratégias da política de atenção integral a usuários de álcool e drogas vem evoluindo rapidamente nas últimas semanas. Diversas listas de e-mails ligados à saúde mental e redução de danos têm abordado o tema, o último encontro do colegiado de coordenadores de saúde mental discutiu junto ao Ministro da Saúde esta incorporação, movimentos sociais têm se reunido em torno deste debate, assim como conselhos de classe em especial o de psicologia. Encontro-me entre aqueles que são críticos a este processo, mas é importante dizer que estapostura se dá a despeito da plena legitimidade da equipe de saúde mental do Ministério da Saúde, sua reconhecida contribuição histórica e seu inequívoco alinhamento com o movimento da reforma psiquiátrica no país. Entretanto, após o debate de sábado com o Coordenador de Saúde Mental do MS entendo que há muitos motivos para preocupações com o tema e gostaria de apontar para alguns deles, com referência no conteúdo da fala do coordenador:
1) Legitimidade das comunidades terapêuticas- acho preocupante a naturalidade com que se tem pressuposto a legitimidade social destas instituições. Vem se dando, com isso,a naturalização da sua incorporação pelo Estado. Esta legitimidade se dá pelo número de usuários de drogas que foram auxiliados por elas? Pela sua conexão com movimentos religiosos também legítimos, pelo número de entidades que de fato apoiam seu funcionamento? É importante salientar que estas razões de legitimidade se estendem a diversos outros modelos institucionais, como, por exemplo, os maus hospitais psiquiátricos, apoiados por associações de classe, por grupos organizados representantes de hospitais e mesmo de usuários da saúde mental. E ainda assim defendemos há anos uma política que supere este modelo de atenção por entendermos que o HP não é promotor de autonomia, impõe uma anulação do sujeito entre outras coisas. Da mesma forma, entender que uma instituição é legítima não é o mesmo de inseri-la na rede de atenção mediante financiamento. A inserção e financiamento das CTsjustificada pelo argumento da legitimidade inverte uma lógica de produzir ofertas necessárias à rede para incorporar ofertas sem saber ao certo para o que elas servem ao SUS. Finalmente, iniciar um diálogo com estas instituições é muito diferente de incorporá-las à rede de atenção em saúde mental.
2) Regulação- Durante o debate, a regulação dos leitos de comunidades terapêuticas foi apontada como a principal estratégia para que elas não passem a ser a resposta universal para a questão do uso de drogas. Existe uma ampla experiência no país em relação à regulação de leitos psiquiátricos: em municípios que implantaram um modelo de atenção baseada em ações territoriais e numa rede substitutiva, as centrais de regulação são importantes dispositivos de articulação do funcionamento do sistema. Dentro deste papel, a regulação de leitos é a instânciaque polariza as maiores tensões da rede e de sua articulação. As vagas em hospitais psiquiátricos são cedidas apenas quando esgotadas as possibilidades da rede substitutiva e isto implica em negar solicitações de vagas, o que constitui uma ação não só técnica, mas política. O tensionamento se dá na medida em que a concepção de que o hospital psiquiátrico é o local de atendimento à crise ainda é hegemônica. No caso da rede de atenção a usuários de álcool e drogas o mesmo acontece; a percepção da necessidade do isolamento e promoção da abstinência em ambiente protegido para o tratamento predomina. Inclusive entre os reguladores e trabalhadores de saúde. Na imensa maioria dos casos, as centrais de regulação atuam como distribuidoras burocráticas de vagas em hospitais psiquiátricos e futuramente de comunidades terapêuticas. O papel técnico e político da regulaçãoé ainda muito frágilnum nível nacional porque não implica exclusivamente em qualificação, mas em alinhamento com a política de atenção em saúde mental referenciada na reforma psiquiátrica. Qualificar as centrais de regulação está longe de ser suficiente para garantir o uso apropriado (qual seria este?) de leitos de CT, especialmente se considerarmos que a regulação é e será feita por psiquiatras.
3) Atenção emRede e Projetos Terapêuticos- é temerária a possibilidade de inserir um dispositivo de atenção em álcool e drogas no SUS sem que tenhamos um perfil claro do seu usuário. Atualmente todos os serviços da rede AD têm seus modelos baseados em experiências que ocorreram em municípios do país e que tiveram a função de preencher lacunas assistenciais. As Casas de Acolhimento Transitório, os CAPS ad III, os SHRad e os consultórios de rua surgiram desta forma. A ideia desta rede é promover a atenção integral e pressupõe uma complementariedade dos serviços. Caso não seja definido o papel das CTs nesta rede, a prática diária nos municípios irá definir este papel. E este papel irá reproduzir a concepção hegemônica de que o cuidado em álcool e drogas deve ocorrercom isolamento do usuário. A rede substitutiva irá se consolidar como complementar e haverá filas de espera de internação em comunidades terapêuticas. O cenário pode parecer pessimista, mas está longe de ser fantasioso. Da mesma forma, o projeto terapêutico das comunidades é fechado, tem tempo de internação pré-definido, há uma programação para o primeiro, segundo, terceiro meses de tratamento, muitas tem ambulatórios para o pós-alta. As CTs não funcionam segundo demandas da rede, mas se entendem como um dispositivo completo.
4) Expansão da Rede- é fantasioso crer que tornar todos os CAPS ad em 24 hs seja viabilizado por uma decisão presidencial. Um serviço comunitário que funciona 24 hs demanda uma transformação da concepção de atenção em saúde mental no município, qualificação dos profissionais, articulação política local e negociação intensa com conselhos. Além disso, há uma demanda de revisão importante do financiamento dos CAPS III. Prova disso é a baixa velocidade de expansão dos CAPS III nos últimos 05 anos. É infinitamente mais fácil para um gestor municipal contratar uma comunidade terapêutica com recursos federais do que implantar um CAPS 24 hs, que irá demandar contratação, licitação, aluguel de imóvel, contrapartida municipal e enfrentamento do conselho de medicina que prega o caráter antiético destes serviços. Diminuir o impacto do financiamento de CTs com o argumento de que a rede de CAPS 24 hs irá triplicar é ingenuidade.
5) RDC 29- A RDC 29 é uma forma de dar legitimidade a um número gigantesco de instituições que se encontravam em situação de irregularidade pelo número de exigências da RDC 101. A demanda de parlamentares ligados às CTs era, há anos, deflexibilizar as exigências para que estas instituições pudessem ser regularizadas. E a mudança da RDC foi neste sentido:dar regularidade às instituições, e não para exigir qualidade do tratamento oferecido. O argumento de que existia um problema técnico na RDC 101 não justifica o fato desta discussão não ter sido levada para a sociedade, para os trabalhadores de saúde ou para os usuários do sistema.
6) Política de Saúde Mental- A reforma psiquiátrica é há anos criticada por propor uma política supostamente baseada num discurso ideológico, sem fundamentação técnica. Desta vez, não há justificativa técnica para o financiamento das comunidades terapêuticas. Não sabemos de quantos leitos são necessários, quem se beneficia disso, não há estudos que comprovem diminuição de mortalidade de pessoas que são submetidas a esta abordagem, não há estudos de promoção de abstinência em longo prazo no pós-alta fora de ambiente protegido. A demanda é política, e de uma política sabidamente não da saúde. A sustentação da incorporação das CTs ao SUS parece passar por um discurso de uma legitimidade que vem da força política de grupos que apoiam o modelo. Não há como ignorar que a força destes grupos não está na instituição que defendem, mas no caráter religioso que permeia todo o projeto institucional e que insere as comunidades numa ideologia (o “poder da fé, da vontade contra o vício”, etc) que agrega força no legislativo. É assustador perceber assim o que está pautando a política de atenção em álcool e drogas.
Finalmente, concordo com o Coordenador Nacional de Saúde Mental ao dizer que as CTs não podem ser ignoradas. Tampouco podemos fugir deste debate as considerando como dispositivos da assistência porque os usuários que as utilizam são os mesmos do Sistema Único de Saúde. Mas este debate tem de ser amplo e deve ter repercussões no âmbito da gestão federal. A portaria de financiamento das CTs deve ter seu lançamento adiado. Deve ser feito um grupo de trabalho no MS com participação dos movimentos para que o tema seja debatido. O Ministro da Saúde em seu discurso de posse afirmou que a questão de álcool e drogas teria uma ampla participação dos movimentos sociais a exemplo do que se deu em AIDS. Está na hora deste compromisso ser cobrado. Porque o custo do descumprimento será, seguramente, que estes movimentos deixarão de se sentir representados nesta gestão.

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XIII Reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental

Nos dias 9 e 10 de agosto, aconteceu a XIII Reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental, composto pelos coordenadores estaduais de saúde mental, pelos coordenadores municipais das capitais e de algumas cidades (ainda não entendi muito bem o critério - mais informações neste link). Estive na reunião à convite da Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, para contribuir com as discussões em torno da política de atenção a usuários de álcool e outras drogas. O tema dominou os debates ao longo de toda a reunião.

Depois de uma manhã inicial meio morna, com atividades de abertura e repasse de informações, as atividades de debate e reflexão foram oficialmente disparadas na tarde do dia 9, a partir de uma mesa coordenada por Antonio Lancetti, que contou com a participação de Marcelo Niel (PROAD); Mari Lúcia Karam (LEAP) e Aldo Benvindo (SEDH). Nesta mesa, o tema central foi o deabte em torno das internações compulsórias que vêm sendo levadas à cabo nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

Depois desta mesa, ocorreria uma mesa comigo, mais Pollyanna Pimentel (Prefeitura do Recife) e Rosemeier Aparecida (Prefeitura de Belo Horizonte). No entanto, no momento em que a mesa iria começar, chegou ao evento o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha. A programação foi flexibilizada, e o Ministro foi convidado à mesa para conversar com o colegiado.

Abriu-se uma rodada para que cinco pessoas fizessem perguntas ao Ministro. Todas o inquiriam a respeito das novas diretrizes para o cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas (especialmente o crack, por certo...), que incluem às Comunidades Terapêuticas como parte integrante das redes. Feitas as perguntas, o Ministro começou a tecer sua resposta, mas parecia tergiversar, demorando-se por demais em aspectos inciais que pareciam por vezes preparar uma desculpa pelo que viria depois (ao menos assim me pareceu).

De repente, alguém na platéia quebra o protocolo, e apresenta o inesperado. Uma das gestoras de Saúde Mental presentes ao evento levanta de seu lugar e interpela o Ministro Alexandre Padilha. Diz que precisamos ter clareza quanto aos rumos da política. Até aquele momento, não estava claro o que estava sendo defendido pelo Governo Federal. Seria preciso muito mais clareza do Ministro, para que os gestores não saíssem da reunião com mensagens dúbias, com diretrizes precárias.

O que seguiu-se não será esquecido tão cedo. A reunião tomou um novo rumo, totalmente inesperado. A mesa, que começou por votas das 16:30, só viria a terminar às 22 horas. Ninguém arredava o pé - nem do salão, nem de suas convicções. O Ministro da Saúde, e também o Coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, tiveram de ouvir de todos os presentes - todos, sem excessão - que discordavam veementemente da opção de incluir as Comunidades Terapêuticas nas redes de atenção em saúde, e no próprio SUS. Segundo os coordenadores municipais e estaduais presentes à reunião, as CT's, em sua grande maioria, não apresentam-se como parceriras confiáveis na contrução do cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas. Há inúmeras denúncias de tortura e maus tratos, ausência de condições físicas e sanitárias, proselitismo religioso, cárcere privado, ausência de qualquer tipo de projeto terapêutico. Por fim, um dos pontos que assumidamente incomodou o Ministro Padilha: a investimento, por parte do Governo Federal, em dispositivos de cuidado deslocados da lógica territorial, representa uma séria contradição com os investimentos do Ministério da Saúde na lógica da Regição de Saúde, defendida com muita energia pelo Ministro Padilha nesta mesma reunião. Foi este o recado do Ministro, às 22 horas daquele dia: que a menção à possibilidade enfraquecimento dos investimentos territoriais o havia sensibilizado profundamente.

A reunião ainda seguiria no dia 10. Na manhã do dia 11, teríamos a cerimônia de lançamento do relatório da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial, e na tarde, no Senado Federal, atividade organizada pelo senador Humberto Costa (PT/PE) referente aos 10 anos de aprovação da Lei 10.216. Voltarei a estes dois outros momentos. Por hora, cabe esta reflexão: a totalidade dos coordenadores municipais e estaduais e Saúde Mental presentes às XIII Reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental são contrários à inclusão das comunidades terapêuticas nas redes de atenção a usuários de álcool e outras drogas, e também a utilização de internações compulsórias como dispositivo de proteção.

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Política de drogas e Brasil contemporâneo: 4 pontos

Semana passada estive em Betim, ministrando a aula de abertura do Centro de Referência em Crack e Outras Drogas da UFMG. Ali, pude desenvolver com um pouco mais de consistência um raciocínio que tenho tentado construir, acerca da articulação de 4 elementos que considero extremamente importantes na análise da conjuntura em termos de políticas de drogas: 1. Campanhas de prevenção ao crack; 2. A "epidemia do crack"; 3. Comunidades terapêuticas; 4. Internações conulsórias.

1. Campanhas de prevenção ao crack

Para quem tem compartilhado comigo os estudos que fiz ao longo do meu mestrado recém concluído, nada de novo. O fato é que entendo o atual modelo de campanhas de prevenção ao crack com que temos operado como parte do problema, e não da solução. Este modelo de "pedagogia do horror" tem transmitido a ideia de que os usuários de crack são zumbis, mortos vivos extremamente perigosos, capazes de prejudicar às pessoas que os amam. Os modelos que representam os usuários nestas campanhas, despertam sensações que vão do medo ao nojo. Parecem saídos de filmes de terror tipo "B".

2. "Epidemia do crack"

"Epidemia" é um conceito teórico, e os conceitos, sabe-se, são formas de ver. De acordo com o modo como vemos, agimos. Nossas ações diante de uma determinada situação têm tudo a ver com o modo como a vemos. O conceito de "epidemia" é uma ferramenta de trabalho preciosa para o planejamento e a gestão em Saúde Coletiva. Porém, pode-se falar de "epidemia" quando nos referimos a um comportamento? Associada à ideia de que os usuários de crack são mortos-vivos, a noção de "epidemia do crack" é fértil em informar à sociedade de que vivemos uma epidemia de zumbis. Além disto, uma epidemia é um fenômenos com início, meio e fim, que exige investimento do Estado ate que o problema se estabilize. Ou seja: assim que a "epidemia do crack" passar, seria possível retirar os investimentos que estão sendo ampliados agora (sem nenhum critério, diga-se de passagem). Eis o que se produz com a recente mudança na nomenclatura das políticas, que deixam de falar em "álcool e outras drogas" (o que apontaria para uma necessária ampliação de recursos, em caráter permanente), para falar em "crack e outras drogas" (indicando que estes recursos poderiam ser realocados, assim que cesse a epidemia).

3. Comunidades terapêuticas

Diante de uma "epidemia de zumbis", há que se mobilizar todos os recursos, "em defesa da sociedade" para citar o nome de um famoso curso que Foucault ministrou nos anos 70, em Paris, justamente para dar conta das políticas de controle da vida promovidas na modernidade, para retirar do convívio social àqueles considerados como perigosos. Neste sentido, constituem-se políticas que têm por objetivo não cuidar de quem se acolhe, mas proteger às pessoas que ficaram do lado de fora (seja dos hospícios, dos leprosários ou das comunidades terapêuticas). Num contexto em que o campo de Saúde Mental Coletiva se recusa a operar conforme lógicas exigidas pola Justiça Criminal e pela "opinião publicada", a sociedade reclama a participação de novas instâncias que dêem conta do recado. As comunidades terapêuticas - mesmo as boas - são chamadas cumprir este papel, que dele gostem, ou não. Como se não bastasse, uma nova portaria da ANVISA diz que não é mais necessário ser profissional de saúde para coordenar CT's: basta ter curso superior. Atenção, maestros de fanfarra recentemente formados pela UFPB: vocês podem ser coordenadores de Comunidades Terapêuticas.

4. Internações compulsórias

Se os usuários de crack são apresentados como monstros, e se a noção de epidemia amplia esta presença monstruosa aos milhões, não bastará a abertura de vagas nos "leprosários do século XXI", que foi a definição dada às comunidades terapêuticas por um religioso que se dedica ao trabalho em uma destas instituições. Afinal, é fácil escapar às CT's, sendo que a maioria delas exige voluntariedade da parte do interno em recuperação. Sendo assim, será preciso reativar os mais anacrônicos processos de controle dos corpos, constituindo-se verdadeiras "corrocinhas de drogados", numa alusão às clássicas "carrocinhas de cachorros". Em Rio e São Paulo, já é possível ver cenas dantescas, em que agentes sociais perseguem moradores de rua e outros indesejáveis. No congresso nacional, o deputado gaúcho Osmar Terra apresentou projeto de lei para flexibilizar as normas que hoje regulam este tipo de prática, restrita aos casos em que há risco de vida do próprio usuário, ou de terceiros.

5. Mas, o que falta?

Será que falta algo pra entendermos melhor a articulação que proponho aqui? É certo que ela é arbitrária, e não contempla todos os elementos presentes para esta reflexão. Mas, a partir destes quatro tópicos, pontuo: tudo isto ocorre em tempos de preparação para Copa do Mundo, e durante um Governo Federal que é escravo de suas alianças com os setores mais reacionários do pensamento cristão contemporâneo.

Amanhã, participarei de uma mesa na reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental. Não pretendo apresentar uma fala como esta que fiz em Betim... Mas minhas preocupações têm passado por aí.
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São Carrano, rogai por nós.

Hoje eu recebi um e-mail enviado pelo Leandro Roque, psicólogo, coordenador de equipe no CAPSad Primavera, na cidade de Cabedelo, Paraíba. É o CAPSad em que eu trabalho, faz dois anos, com muito orgulho. Mas no e-mail, infelizmente, mais uma notícia sobre torturas em uma clínica privada de "tratamento" para pessoas que usam álcool e outras drogas.

Até aí, nada de novo. Infelizmente, as denúnicas de absurdos relacionados a este tipo de instituição não são nenhuma novidade. Aqui mesmo, no meu site, é possível encontrar um texto no qual eu falo disto, que saiu em duas publicações ("Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas", organizado pelo CRP/RS, e "Gênero e Drogas", que saiu pelo Instituto Papai e Gema).

Neste texto, eu faço referência a dois personagens que julgo muito importantes na escrita de uma literatura menor sobre o tema do "cuidado" a pessoas que usam álcool e outras drogas (que é, a bem da verdade, um subcapítulo do grande livro dos horrores que é a história do "cuidado" em "Saúde Mental"). O primeiro, relativamente popular no Brasil, é Austragésilo Carrano, que ficou mais conhecido por meio de Neto, personagem central de "Bixo de 7 Cabeças", filme de Lais Bodanski inspirado no livro em que Carrano conta sua passagem pelos porões mancomiais. O segundo, menos conhecido, é o portoalegrense Caho Lopes, que criou o personagem Klaus para descrever o inferno que passou em uma clínica privada.

Eu também estive em uma destas clínicas, e falo sobre isto no referido artigo. Era 1989, Porto Alegre. Foi apenas uma noite e uma manhã, e não, eu não fui torturado. Mas lembro de algumas coisas:

1. área que era destinada ao banho de sol. Era muito pequena, não mais que um quadrado de 5 por 5, ladeada por altos muros. O detalhe: acima de nossas cabeças, havia grades... Era um céu gradeado sobre nós...

2. houve um bingo logo após o almoço. Ganhei um chocolate. Quando ofereci um padeço ao cara que estava ao meu lado, ele se afastou de mim como quem se afasta de algo muito perigoso, dizendo "Não! Não! Não!". Era proibido dividir qualquer coisa com outros internos.

3. saí logo depois deste almoço. Meu pai foi me buscar. Num primeiro momento, disseram-lhe que ele só poderia me ver depois de meses. Quando elevou o tom de voz, fui solto.

4. minhas roupas foram todas carimbadas com uma longa numeração.

5. Lembro que busquei alguma coisa pra ler, e encontrei uma brochura produzida pelos próprios internos, provavelmente em alguma oficina. Havia uma espécie de charge falando em "Neozine na veia", em tom ameaçador, uma brincadeira feita pelos internos diante da realidade do uso de medicação como castigo.

Esta clínica passou por problemas tempos depois, quando uma rebelião terminou com uma estagiária feita refém, e fuga em massa. O prédio foi interditado para internação de usuários de drogas, mas ainda hoje é possível encontrar referências a atividades deste tipo realizadas no mesmo local. Não farei nenhuma referência ao endereço ou ao nome da instituição, pois o próprio Carrano, falecido recentemente, sofreu grandes prejuízos financeiros por ter denunciado os canalhas que administravam os buracos pelos quais ele desafortunadamente passou.

Usuários de drogas têm suas palavras capturadas pelo seu diagnóstico. "São manipuladores", dizem. Não podem reclamar do tipo de tratamento que se lhes oferece, pois isto será traduzido na sintomatologia como "resistência ao tratamento". E é possível que a carga de "tratamento" aumente, o que pode significar, na prática: aumento de medicamentos, de tortura, ou tempo de internação. Ou o que é pior: de tudo isto junto.

Coisas para pensarmos em tempos de internação compulsória...
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Entre imagens e palavras, uma dissertação

A dupla aí ao lado tem razões de sobra pra esbanjar sorrisos. De azul celeste (em homenagem ao Uruguay!), está o nobre detentor deste território virtual; ao seu lado, vestindo modelito neocubista, o Dr. Erenildo João Carlos, professor no Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, e meu orientador no mestrado em Educação, cuja defesa aconteceu hoje. Sem sua parceria, não teria sido possível levar à cabo o trabalho de analisar o discurso em campanhas de prevenção ao uso de crack, a partir do instrumental teórico-metodológico da Análise Arqueológica do Discurso, de Michel Foucault.
Mas como eu ia dizendo, a dupla tinha mesmo razões de sobra pra estar toda sorrisos. O auditório do PPG Educação lotou pra assistir à defesa da dissertação "Entre imagens e palavras: o discurso de uma campanha de prevenção ao crack". Os professores convidados para a banca trouxeram lindas contribuições, e não economizaram elogios ao resultado final do trabalho de dois anos de pesquisa sobre as campanhas de prevenção ao uso de crack. O professor Erinaldo trouxe contribuições para aprofundar a reflexão sobre as visualidades; o professor Vaz proble-matizou aspectos relacionados à análise propriamente dita, questionando a respeito de minha compreensão de que o que fiz não pode ser chamado de uma "interpretação"; por fim, o professor Luiz Júnior trouxe um olhar radicalmente foucaultiano, em seu recorte mais anarquista, mas rebelde. Chamou-me de "transgressor", o que deixou-me muito orgulhoso!

A banca concluiu que minha dissertação contempla as exigências que me tornam apto a receber o título de mestre. Mas o que me deixou mais feliz foi a indicação unânime de que meus escritos sejam publicados no formato de um livro! Agora, é o esforço de adaptar a dissertação a uma linguagem diferente da utilizada na academia.

Ao que parece, a única coisa ruim foi que eu não consegui fazer funcionar a maquinaria para transmitir toda a cerimônia por meio da twitcam. Ao menos a defesa foi gravada; quem sabe conseguimos colocar algo no YouTube?
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Assista minha defesa de mestrado aqui!!!

Na próxima quinta-feira, dia 14 de julho, às 13 horas, estarei fazendo a defesa de minha dissertação de mestrado em Educação, no auditório do Programa de Pós Graduação em Educação, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Deois de conversar com os membros da banca de avaliação, obtive autorização para transmissão on line, através de um aplicativo do twitter (twitcam). Como forma de facilitar o acesso, vou disponibilizar a transmissão aqui mesmo, na página de abertura de meu site. Basta acessá-lo no dia e hora da defesa, e torcer para que tudo dê certo!

Explico: trata-se de uma tecnologia muito nova, e ao mesmo tempo rudimentar. Tenho assistido a alguns programas produzidos deste modo, com a utilização de algumas tecnologias extremamente simples (por exemplo, um programa de debates feito com uma webcam, e transmitido por meio de um notebook conectado por 3G...). De modo que vamos nos esforçar para que tudo corre bem no dia da transmissão, já antecipendo as desculpas caso algo não saia à contento.

Em tempo: a banca de avaliação será presidida por meu orientador, o Prof. Dr. Erenildo João Carlos, e terá a participação dos Profs. Drs. José Vaz Magalhães Néto (PPG Ciências da Religião, especialista em Análise do Discurso), Luiz Pereira de Lima Júnior (PPG Educação, especialista em Foucualt, Biopoder, Anormais...) e Erinaldo Alves do Nascimento (PPG Artes Visuais, especialista em leitura de imagens).
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Redução de Danos como dobra e linha de fuga

A história dos cuidados dirigidos à pessoas que usam álcool e outras drogas não é exatamente um mar de rosas. Quando os leprosários foram restaurados para atender às necessidades da "grande internação" descrita por Foucault em "A História da Loucura", o lugar para os bêbados de rua não estava propriamente reservado, mas foi-se constituindo rapidamente, e justamente a partir deste processo. Virgínia Berridge, historiadora que se dedica a uma história das ideias relacionadas ao tratamento de usuários de drogas, diz que a "adicção" foi inventada em fins do século XVII e início do século XVIII. O Iluminismo? Este trouxe ao campo dos cuidados uma profunda mudança... retórica! Mas, do ponto de vista dos próprios usuários, pouca coisa mudou: a assistência era muito mais uma coisa à qual eles eram submetidos, do que um direito propriamente dito.

Muita água passou por debaixo da ponte até que algumas vozes pudessem ser erguidas para dizer: "Ei, tem alguma coisa errada aí...". No Brasil, por exemplo, não bastou que o artigo 196 da Constituição Federal nos dissesse que "saúde é um direito de todos e dever do Estado", para que se tornasse óbvio que a saúde é um direito, e não um conjunto de procedimentos passíveis de serem impostos aos sujeitos. Foi preciso o advento da Aids - menos como evento biológico, mais como fenômeno político e cultural - para que se começasse a discutir que havia mais o que fazer do que simplesmente encarcerar no hospício, na prisão, ou em clínicas especializadas (no caso dos mais abastados).

Foi no âmbito das políticas de enfrentamento à epidemia de HIV/Aids que se constituiu, com força política, o movimento social de Redução de Danos. Mais do que um conjunto de estratégias preventivas, a Redução de Danos serviu como "dobra" e "linha de fuga". Dobra, porque talvez tenha sido a primeira vez em que dispositivos de saúde foram constituídos COM usuários de drogas, e não PARA eles (ou mais: SOBRE eles). Eis que uma política de saúde pública operava não como dispositivo de disciplinamento e controle, mas como linha de fuga, permitindo operar a reflexão sobre o cuidado a partir de lógicas muito próximas daquilo que Foucault chamaria de "tecnologias de si", e que os gregos chamariam de "dietética".

Agora, anunciam-se tempos trevosos... Simultânea à impressionante novidade representada pelos milhares de usuários de drogas que têm ganho as ruas em manifestações que exigem a legalização e regulamentação das relações de produção, circulação e consumo de maconha, vemos a irrupção de diversas iniciativas que representam o que há de mais conservador em se tratando deste tema. Em nível federal, o governo anuncia a abertura de milhares de leitos de longa duração para internação de usuários de drogas em Comunidades Terapêuticas, numa atualização perversa do modelo preconizado por Phillipe Pinel em seu "Tratado Médico-Filosófico"; concomitante à isto, o Ministério da Saúde anuncia uma ampla revisão de sua política de Saúde Mental, o que pode redundar em fechamento de CAPS, incluindo aí os "ad"; por fim, vemos o Governo do Estado do Rio de Janeiro colocar nas ruas algo próximo às antigas e famigeradas "carrocinhas de cachorro", para recolher usuários de crack em situação de rua, ao mesmo tempo em que o deputado gaúcho Osmar Terra faz passar, em primeira instância, seu projeto que pretende "flexibilizar" (eita palavra maldita em nossos tempos...) os requisitos necessários para internação compulsória de usuários de drogas. Se o seu projeto for aprovado, bastará o pedido de um médico para que o procedimento de internar uma pessoa contra sua própria vontade seja levado à cabo.

Coincidência que tudo isto ocorre poucos meses antes da Copa do Mundo? A história recente nos mostra que o Brasil sempre se esforça para esconder seus miseráveis dos visitantes estrangeiros... Macacos me mordam se isto não está na mente de muitos legisladores e gestores...

"Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática" (Franco Basaglia).
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Um neo-higienismo pré-Copa do Mundo?

É paranoia minha, ou temos vivido um recrudescimento de políticas públicas de caráter higienista, verdadeiros processos de "limpeza urbana", com a retirada dos "indesejáveis" das ruas? Esta permanente precoupação com os usuários de crack que se reúnem nas "crackolândias", que é simplesmente um novo nome para uma reunião pública de pessoas surrupiadas em sua identidades, subtraídas em sua singularidade. São "mendigos", "pivetes", "cheiradores de cola"... Já tiveram tantos nomes ao longo da história, estes a quem hoje chamam "usuários de crack". Os nomes da exclusão (ou da "desfiliação" pra ficar com a definição do Castel em "Metamorfoses da questão social").

No início do ano, a visita do Sr. Barak Houssein Obama talvez tenha sido um grande ensaio do que nos espera com respeito à Copa do Mundo. As ruas foram "limpas", populações inteiras tiveram seus mais fundamentais direitos "flexibilizados". Aos que se permitiu algum movimento, foi apenas a partir de careografias muito bem delimitadas.

Paralelo às políticas de controle da vida, há as intervenções estruturais na própria materialidade da cidade. A construção da Transcarioca está sendo precedida de remoções em massa de uma imensa quantidade de pessoas, desalojadas de suas casas sem nenhuma garantia de indenização.

Agora, chegam notícias a respeito de internações compulsórias em massa. Instituem-se verdadeiras "carrocinhas de usuários de crack", em alusão às antigas carrocinhas de cachorro. O ex-secretário de saúde do Rio Grande do Sul, atual deputado federal, apresenta à Câmara projeto que visa regulamentar e simplificar os processos de internação compulsória, que passariam a ser decididas simplesmente por um médico, como uma espécie de "receita". Hoje, a internação compulsória já é regulamentada pela lei da Reforma Psiquiátrica, e necessita ser comunicada ao Ministério Público.

Paralelo à tudo isto, seguem as mortes de pessoas identificadas como "usuários de crack" em todo o país. Um verdadeiro genocídio.

A abertura de amplas avenidas, a remoção de casas populares, pessoas jogadas nas ruas, higienismo social, internação compulsória... Será que a Revolta da Vacina vai estourar? Sinto-me no início do século XX... Alguém viu o Oswaldo Cruz por aí?
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Pedagogia do horror

Neste domingo, fui interpelado pela notícia de que o Conselho Nacional de Justiça está empenhado em divulgar as peças da campanha "Crack nem pensar", do Grupo RBS. Tema de minha dissertação de mestrado, a campanha é um triste exemplo de como é possível, por meio de uma inervenção desastrada, aumentar ainda mais o problema que deseja-se combater. Suas tristes imagens ampliam em muito o estigma e o preconceito sobre usuários de crack.

Enviei um breve texto manifestando minha indignação à ouvidoria do CNJ. Segue abaixo:

"Dedico-me ao trabalho preventivo e de recuperação de pessoas que usam drogas há pelo menos 10 anos. Antes disto, eu mesmo fui usuário abusivo por mais 10 anos. Ao todo, são 20 anos dedicados, de uma ou outra forma, ao universo das drogas. A campanha disparada pelo Grupo RBS é uma das piores iniciativas já desenvolvidas para lidar com este tema, tanto no Brasil quanto fora dele. Se estivéssemos falando de uma campanha de prevenção a Aids, nestes mesmos moldes, teríamos um escândalo de proporções internacionais, e o Brasil certamente teria suas orelhas puxadas, tanto por organismos internacionais, quanto pelo movimento social que se reúne em torno do tema da Aids. A campanha em questão, que agora é tristemente replicada pelo CNJ, é pródiga, não em prevenir o uso de crack, mas em ampliar o preconceito e o estigma, que são parte importante do problema. Insisto: aumentar o estigma e o preconceito sobre pessoas que usam crack não ajuda a diminuir o uso, pelo contrário: amplia a exclusão social, amplia a culpa, amplia a ojeriza que a sociedade sente por estas pessoas. Amplia o medo, a sensação de que estas pessoas são perigosas. Trata-se de uma das piores campanhas de prevenção ao uso de drogas já realizadas neste país. E o CNJ, ao invés de contribuir para a reflexão sobre os modos de se fazer prevenção, simplesmente amplia a potência de tal campanha. Triste, muito triste."
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Roda sobre Redução de Danos em Boqueirão.

Ontem, dia 20 de junho, participei de uma roda sobre Redução de Danos na cidade de Boqueirão, Paraíba. A atividade fez parte do II Seminário de Formação Continuada em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, organizado pela Coordenação de Saúde Mental do Município de Boqueirão. Participaram ainda do evento a psicanalista Glacy Gorski, que é supervisora clínico-institucional da rede de Saúde Mental da cidade, e as professoras Carmem Tereza e Valéria Soares, do curso de Terapia ocupacional da UFPB. Boqueirão é uma cidade que investe forte em Saúde Mental, e que é conhecida pela seriedade com que desenvolvem projetos envolvendo trabalho e geração de renda.

Infelizmente, não me foi possível participar do seminário desde o início. Chegei um pouco atrasado para a roda da tarde, que estava marcada para as 14:30. Havia algo como 40 pessoas reunidas em uma roda: muitas agentes comunitárias de saúde, além de alguns profissionais de equipes de CAPS e PSF. Em uma roda de apresentação, foi possível perceber, rapidamente, que a grande maioria das presentes tinha algum tipo de problema relacionado ao uso de álcool e outras drogas dentro da família. Nos serviços, não era diferente: a maioria dos presentes percebe que estas questões estão chegando com maior frequência ao SUS.

Conversamos bastante sobre o conceito de Atenção integral a pessoas que usam álcool e outras drogas. O grande nó se resume, disse, a percebermos que as pessoas que usam álcool e outras drogas não se reusmem aos seus usos, mas que têm necessidades e demandas que se situam para muito além da drogas.

Ao final do seminário, a coordenadora de Saúde Mental de Boqueirão, Teresinha Brito, convidou-me a conhecer as duas iniciativas de Economia Solidária que tornaram esta uma cidade referência no estado da Paraíba. Inicialmente, conheci o galpão em torno do qual há uma série de hortas de flores, e também de uma série de hortifrutigranjeiros. Dali, fomos ao restaurante, no qual havia fila para compra de uma sopa que, ao que parece, já se tornou conhecida na cidade. A equipe contou-me que se vende algo entre 40 e 50 almoços por dia, além das sopas à noite.

Como já tinha feito um lanche ao final da roda de conversa, agradeci à sopa, mas aceitei de bom grado o cafezinho. Estava uma delícia!
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Do seminário em Recife ao STF em Brasília

Acabou ontem o seminário "Drogas: cidadania, autonomia e tutela", promovido pelo Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco. Auditório lotado, cerca de 500 pessoas, salas de grupos abarrotadas, debates incendiados. Gente como Rafael Gil, Paulo Fraga, Sérgio Vidal, Marta Conte, Humberto Verona, Alda Roberto e tantos outros circularam por lá, garantindo a profundidade dos muitos debates, em torno de múltiplos temas relacionados às drogas e seus usos. Os psicólogos pernambucanos estão de parabéns!

A mesa de abertura teve representantes do Ministério Público, Secretaria Estadual de Saúde, Conselho Federal de Psicologia, Conselho Regional de Psicologia, Câmara de Vereadores, Rede Internúcleos da Luta Antimanicomial e Associação Pernambucana de Usuários e Ex-Usuários de Álcool e Outras Drogas. Abertura feita, coube a mim a conferência de abertura. O tema surgiu de uma fala feita pelo Marcus Vinícius durante reunião de articulação de uma rede de ativistas interessados no tema das drogas, realizada durante a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, articulando os temas: drogas; subjetividade; autonomia; tutela. Ciente disto, escrevi um e-mail ao Marcus pedindo algumas linhas de inspiração. Na resposta, generoso, Marcus disse que não havia criado nada de novo; apenas articulav temas que foram os mesmos articulados por Franco Basaglia para pensar as transformações em Trieste, e que até hoje inspiram o Movimento da Luta Antimanicomial.

Iniciei minha fala com uma justa homenagem ao Marcus, que sofreu um grave acidente no sábado, do qual já está se recuperando. Iniciei em Descartes, passei por Pinel, e falei de um filme belga chamado "O Ilusionista". Em um dado momento, uma das personagens é submetida a uma lobotomia, da qual resulta uma cicatriz na testa. Momentos depois, há uma cena em que esta personagem retira de sua testa a cicatriz, como fosse (e realmente era) um simples decalque, um recurso de maquiagem. Até contínuo, volta às mesmas características "loucas" de antes da cirurgia, diante do que sua família torna-se agressiva com ele. Como os usuários de drogas, a personagem do filme opta pela desrazão, e é por isto é amaldiçoada.

Terminei minha fala abordando o tema das Marchas da Maconha: podemos ser até mesmo contrários à legalização desta ou de qualquer outra droga, mas jamais poderemos sustentar a cassação do direito de livre manifestação dos participantes. Se cidadania faz bem à saúde, deveríamos mesmo incentivar a participação dos usuários de drogas neste tipo de debate.

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No exato momento em que escrevo esta postagem, ouço o voto do Ministro Celso de Mello, em defesa da legalização da Marcha da Maconha. Diz o Ministro que é "perfeitamente lícita a manifestação a favor da descriminalização das drogas". Vivemos um momento histórico. A partir de agora, o espírito da Lei 11.343, que buscava escancaradamente a promoção de cidadania entre pessoas que usam drogas, começa a florescer em sua dimensão mais progressista. É o que espero...

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A votação no STF já terminou há algumas horas. Por 8 votos a zero, foi definido que as Marchas da Maconha são atividades legítimas, não podendo ser consideradas como uma apologia ao crime ou ao consumo de drogas. Além disto, está plenamente autorizada a utilização da palavra "maconha", sem nenhuma necessidade de buscar outras denominações para as marchas.

Sem dúvida nenhuma, é um dia histórico para as políticas de drogas. A partir de agora, os usuários de drogas podem ser efetivamente respeitados em seu direito de participação na elaboração das políticas dirigidas justamente para eles mesmos. Isto não é apenas o mais correto do ponto de vista dos princípios democráticos, mas também resulta em políticas públicas de maior qualidade. Quem ganha é a sociedade como um todo.
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Maratona de atividades

Nos últimos dez dias estive em três cidades diferentes, em atividades de formação para trabalhadores da Assistência Social, e em mais uma para um minicurso voltado à comunidade acadêmica. As atividades para a Assistência Social foram nas cidades de Recife, Bom Jardim e Igarassu. Nas duas primeiras, estive com as equipes dos CRAUDs (Centro de Acolhimento e Referência ao Usuário de Drogas). Com estes, foi meu terceiro encontro com a equipe do CRAUD Recife, e o segundo com o de Bom Jardim, onde eu sempre me supreendo com a presença não apenas dos técnicos, mas também de usuários do serviço.

Em Igarassu eu pude conversar com a equipe do CAUD (Centro de Atendimento ao Usuário de Drogas). Na chegada, a instituição lembra em muito uma Comunidade Terapêutica, mas há diferenças muito grandes. Não há limites com respeito ao uso de telefone, os familiares podem fazer visitas quando desejarem, e os usuários retornam para casa todo fim de semana. Há um forte investimento no reforço escolar, bem como oficinas de artesanato e capoeira. O estímulo à espiritualidade existe, mas sem indicação desta ou daquela religião.

Já a atividade voltada à comunidade acadêmcia foi realizada na cidade paraibana de Campina Grande, onde ministrei um minicurso de 12 horas, na UEPB (Universidade Estadual da Paraíba). O evento foi uma promoção do curso de Psicologia, e contou com a presença de dezenas de estudantes, além de conselheiros tutelares, professores universitários e profissionais do Consultório de Rua e do CAPSad local. Na pauta, as contribuições da Redução de Danos para o cuidado de pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas.
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Marcha da Liberdade em SP

Neste sábado, dia 28 de maio, mais de trinta organizações marcharam na Avenida Paulista, em defesa da liberdade de manifestação, expressão e organização política. No sábado passado, a Marcha da Maconha foi brutalmente reprimida, rendendo imagens tristes que nos fizeram lembrar a Ditadura Militar: bombas de gás, balas de borracha, bombas de efeito moral, cassetetes, brutalidade, socos e pontapés... A democracia sangrou na Paulista.

A violência teve efeito imediato: mesmo que não defende a legalização da maconha indignou-se com a ação da polícia. Autoridades, jornalistas e intelectuais manifestaram sua indignação diante do ocorrido. Apenas algumas vozes isoladas, como a do reacionário-mor Reinaldo Azevedo (o Bolsonaro do jornalismo), levantaram-se em defesa da brutalidade indefensável da polícia paulista. Até mesmo a Folha de São Paulo posicionou-se, por meio de um editorial, denunciando as agressões que atingiram não apenas os manifestantes, mas também aos jornalistas presentes.

A resposta foi primorosa: mais de 4000 pessoas marcharam neste sábado, em defesa da liberdade. Ocuparam a Avenida Paulista com beleza e alegria, e também com justa indignação. A imagem que ilustra esta postagem não deixa dúvidas quanto ao espírito ao mesmo tempo revoltado e desarmado dos manifestantes, que ofereceram flores aos policiais presentes ao ato, que transcorreu sem maiores problemas.

A nota triste segue por conta do lastimável desembargador Teodomiro mendez, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que irresponsavelmente proibiu a manifestação, mais uma vez. Ao que parece, o ilustre operador do Direito gosta mesmo de sangue e violência, não apenas por sua tentativa de mais uma vez jogar a polícia paulista contra manifestantes desarmados, mas elo já sabido processo que o condenou por agredir violentamente a um trabalhador dentro da cela de uma cadeia, com a conivência dos responsáveis. E eu que achava que os magistrados tinham de ter uma filha limpinha...

Que este senhor desprezível não manche a beleza do povo nas ruas.
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Barbárie em São Paulo - A democracia sangra na Paulista

Graças a um convite para participar de um seminário promovido pelo Conselho Regional de Psicologia em Caxias do Sul, realizado na sexta-feira, eu pude estar no domingo em Porto Alegre, e acompanhar pela primeira vez a Marcha da Maconha. A atividade foi muito bonita, colorida, divertida, sem nenhum incidente. Os manifestantes ocuparam a parça (posto que "a praça é do povo", como diz o poeta), deram o seu recado, e provocaram reflexão. Conquistaram adesões e adversários, tudo conforme os ditames mais óbvios de qualquer regime democrático.

Há outro poeta, entretanto. Bertold Brecht pergunta: "Que tempos são estes, quando falar sobre árvores é quase um crime, pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?". Seria realmente muito bom falar sobre a alegria cidadã das marchas em Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras tantas, não fosse necessário denunciar veementemente a violência jurídica e policial ocorrida na Marcha da Maconha em São Paulo. Jurídica, pois coube a um dito "Operador do Direito" o ato de jogar na lata do lixo a mesma Constituição Federal que deveria defender, a mesma liberdade de expressão que deveria ser o principal bem tutelado em uma democracia que realmente merecesse este nome.

Quanto à violência polícial, esta não precisa ser descrita em palavras, já que pode ser vista no YouTube, e até mesmo veiculados pelas mais importantes redes de televisão do país. Vítimas desta violência, como que num retorno aos tempos da Ditadura Militar, manifestantes e jornalistas foram alvo de cacetetes, balas de borracha, spray de pimenta e gás lacrimogênio. Infelizmente, ainda não sei colocar imagens do YouTube aqui no Blog, mas deixo o link para quem quiser, neste link.

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Bons encontros durante o 7º CONPSI

Nesta semana que passou, estive em Salvador à convite do CFP, participando do 7º Congresso Norte-Nordeste de Psicologia (CONPSI). Infelizmente, só pude participar a um dia e meio de atividades (a tarde de sexta e o dia inteiro no sábado).

No primeiro dia, assisti a uma mesa redonda com João Sampayo, Rafael Dias e Marco Manso (foto ao lado), sobre Redução de danos e políticas de drogas. Rafael é militante do campo dos Direitos Humanos, preocupado com a transformação das drogas em dispositivo de controle, que se expressa em sua forma mais duras por meio da violência de Estado sobre os pobres, espeicalmente homens jovens, negros e pobres. João é um camarada que eu ainda não conhecia, falou sobre sua experiência como coordenador do CAPSad III Gey Espinheira, em Salvador, e problematizou a capacidade de vencer demandas tão complexas quanto as articuladas por pessoas que usam drogas, demandas estas que se situam para muito além daquilo que um único serviço possa oferecer, por melhor que ele seja. O último, Marco Manso, é um parceiro que conheci no movimento social de Redução de Danos, ou mais precisamente, no Projeto RoDa Brasil. É um dos mais experientes redutores de danos do Brasil, com atuação forte em Salvador, há mais de 15 anos, imagino.

No sábado, assisti a duas atividades muito especiais. A primeira foi um relato de Vera (infelizmente não anotei seu sobrenome!), falando sobre sua experiência na equipe do Balance, organização baiana que atua com Redução de Danos em festas Rave. Falou sobre Clínica Ampliada, Acompanhamento Terapêutico, e sobre a inadequação da expressão "Redução de Danos" para dar conta da complexidade daquilo que se efetua no território vivido.

Depois desta atividade, foi realizada a Mesa Redonda que me levou à Salvador, junto com Maria Lúcia Karam e Maria Luíza Rizzotti. ESta mesa estava inicialmente marcada para s 18 horas deste mesmo dia, o sábado, também o último dia do congresso. Os propositores da atividade julgaram o horário ruim, e propuseram sua alteração. No entanto, a divulgação da mudança não foi efetiva, resultando no esvaziamento da atividade. Mesmo assim, foi bom ouvir Karam destruir os argumentos de sustentação do modelo proibicionista, denunciando a estupidez da guerra às drogas em todas as suas consequências. Rizzotti trouxe sua experiência como gestora da área de Assistência Social, para dizer da importância da intersetorialidade para garantir a integralidade no cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas.

A última atividade da qual participei foi uma roda com Marcelo Andrade, do Balance, que defendeu a retomada da agenda de pesquisas com a utilização de drogas psicoativas, e Tom Valença, psicólogo do CAPSad III Gey Espinheira. Ambos denunciaram a Guerra às Drogas como principal responsável por todo o processo que resulta no atual extermínio de jovens pobres, em todo o Brasil.

Em breve, pretendo disponibilizar a fala de Marcão no Youtube.
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Pontes entre Redução de Danos e Educação Popular

Disponibilizo abaixo o texto que produzi para o livro feito a partir de falas recolhidas durante o "V Seminário Nacional Psicologia e Políticas Públicas: Subjetividade, Cidadania e Políticas Públicas", que será lançado hoje, durante a seção de lançamentos do 7º Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, em Salvador. Estou no congresso, e hoje a tarde assisti a uma mesa maravilhosa, que contou com as paticipações João Sampaio, Rafael Dias e Marco Manso, falando de Redução de Danos. Amanhã, participo de uma mesa com Maria Lúcia Karam, sobre políticas de drogas, na qual pretendo falar sobre a produção do usuário de drogas nas campanhas de prevenção ao crack. Por enquanto, fica aí o texto do livro; particularmente, eu gostei do resultado final, e espero que ele possa servir como inspiração para outras pessoas.

Sou sociólogo e militante da Luta Antimanicomial. Foi por ser militante da Luta Antimanicomial, e por ser educador popular, que me tornei redutor de danos. Não foi por ser militante do movimento de luta contra a Aids. Talvez nem todo mundo aqui saiba por que isto é algo interessante (trabalhar com Redução de Danos e não ser militante do movimento de luta contra a Aids). Para quem já se aproximou da Redução de Danos através da Saúde Mental, pode parecer estranho. De qualquer modo, acabei me tornando militante do movimento de luta contra a Aids, depois; minha aproximação com a Redução de Danos deu-se por ser educador popular, e por ser militante da Luta Antimanicomial. E eu percebo uma coisa: a grande contribuição que nós, educadores populares e sociólogos, temos a dar para reflexão sobre o uso indevido de drogas, do uso problemático, uso abusivo ou seja lá que nome nós vamos dar para isso, é justamente a partir dos nossos saberes da Educação Popular e das Ciências Sociais.
Gostaria de contar uma pequena história antes de irmos para os pontos que eu quero abordar. Sou gaúcho de Porto Alegre, morando há pouco tempo na Paraíba. Cheguei lá para fazer mestrado em Educação, linha de pesquisas sobre Educação Popular, trabalhando com campanhas de prevenção ao uso de crack. E cheguei precisando encontrar trabalho também! Foi quando fiquei sabendo de um concurso para professor de Sociologia da Saúde no curso de Psicologia de uma importante universidade. Pensei: “Vou participar desta seleção, para dar aula de Sociologia da Saúde a futuros psicólogos. Massa!”. Desde o início de minha formação como cientista social, eu sempre busquei o diálogo com o campo da Saúde Coletiva, com a história do SUS no Brasil, com todo movimento de Reforma Sanitária e da Luta Antimanicomial. Pensei: “Está para mim! Vamos ver a lista de livros”.
Qual não foi a minha surpresa; dos cerca de 20 livros exigidos na prova, nenhum deles era de Sociologia! Nem mesmo de Saúde Coletiva. Nada de Gastão Wagner, nada de Emerson Merhy, nada de Sérgio Arouca. Nada de Michel Foucault, nada de Pierre Bourdieu. Nem Marx, Weber ou Durkheim. Todos os autores recomendados para a prova de seleção para professor de Sociologia da Saúde eram da Psicanálise, e mais: de orientação lacaniana! Todos, com exceção de um historiador! E eu me perguntava: “Eles querem mesmo um professor de Sociologia? Então, por que nenhum texto escrito por um sociólogo entre os solicitados?”.
Achei importante começar com esta história, já que sou um sociólogo convidado para um congresso de psicólogos e psicólogas. Fala-se muita em inter, trans e multidisciplinaridade, mas... Até que ponto essa diversidade é desejada? Até que ponto nós estamos realmente abertos ao diálogo com outros campos de saber? Nós queremos realmente dialogar, ou queremos apenas dizer que queremos dialogar? Porque, afinal de contas, é bonito dizer isso. Pega bem...
Uma das grandes contribuições da Educação Popular para uma reflexão sobre os problemas relacionados ao uso de drogas na contemporaneidade – e para a produção de políticas públicas voltadas às pessoas que estão sofrendo em função do uso de drogas -, é algo que não vai soar nem um pouco estranho para vocês, profissionais da área psi: trata-se da possibilidade de uma escuta radical do outro, essa possibilidade de um acolhimento radical das diferenças, de uma escuta que está para além da normatividade, uma escuta que realmente quer dialogar com a diversidade, e que não apenas diz isto por achar bonito. É princípio fundamental da Educação Popular, e para a grande maioria dos profissionais psi, esta abertura a uma escuta radical. E uma das coisas que tem chamado cada vez mais a minha atenção é justamente essa dimensão da fala das pessoas que usam drogas, especialmente nos serviços de saúde pública. Claro que muitas das coisas que vou dizer aqui também podem contribuir para a reflexão sobre nossas práticas no consultório privado, o que por si só já é uma inversão, já que temos visto muitos profissionais cuja experiência resume-se ao ambiente privado, levando suas reflexões para o público, por meio de supervisões clínico-institucionais.
Discursos autorizados e discursos interditos
Existem dois discursos autorizados às pessoas que usam drogas. O primeiro é o discurso que eu tenho chamado de desesperado ou derrotado, das pessoas que não aguentam mais o uso, e que buscam ajuda de modo absolutamente subserviente, sem questionamentos. Deste, recordo de uma frase comum em ambientes de tratamento para pessoas que usam álcool e outras drogas: “Quem está se afogando não tem o direito de escolher a boia; deve pegar a primeira que aparecer”.
O segundo discurso autorizado a pessoas que usam álcool e outras drogas é aquele que eu tenho chamado de heróico ou vitorioso, das pessoas que superaram o uso de drogas, e que se apresentam como heróis. Destes, costuma-se dizer que são pessoas que estiveram no inferno, à beira da morte, mas que conseguiram retornar e agora possuem um testemunho muito importante para os outros, que ainda não conseguiram superar seus problemas com o uso de álcool e outras drogas.
Esta interdição dos discursos alternativos ao vitorioso e ao derrotado produz sérios efeitos na nossa escuta, e por consequência, no modo como se estruturam os serviços especializados a estas pessoas. Lembro de uma amiga que fazia residência em psiquiatria lá no Rio Grande do Sul. Uma vez, ela disse o seguinte: “Poxa, eu queria tanto poder cuidar de pessoas que usam drogas, mas eu não estou preparada para isso”. Eu perguntei o porquê, e ela respondeu: “Na residência explicam que é preciso ser muito esperto, porque o usuário de drogas é um manipulador. E como eu gosto de ter uma escuta mais acolhedora, mais desarmada, eu não posso trabalhar com estas pessoas”.
Vejam que tipo de coisa é dita por aí: que profissionais com escuta acolhedora não podem trabalhar com pessoas que usam álcool e outras drogas, porque “estes perversos vão manipular você. É interessante que pensemos isso a partir das questões que acabei de trazer com respeito aos discursos autorizados e interditos. O ponto é: as pessoas não são imbecis, e sabem quais discursos são autorizados, e quais são interditos. Então, quando se diz que é preciso ter cuidado com “esta gente” que usa álcool e outras drogas, fecha-se a escuta e subtrai-se às pessoas o espaço para que digam qualquer outra coisa diferente daquilo que esperamos ouvir.
Isso é muito comum em sala de aula também, e Paulo Freire sabia disso. Ele considerava tarefa do educador popular a criação de um espaço radical de acolhimento, um acolhimento que eu chamo de incondicional. Por quê? Porque se nós não fizermos isso, o educando vai nos dizer aquilo que ele acha que queremos ouvir. Por quê? Porque ele quer ser acolhido! E quando ele quer ser acolhido, ele vai nos trazer aquilo que ele acha que queremos ouvir. Ele não vai dizer nada que possa resultar em sua exclusão. E sabem do que mais? Normalmente aquilo que ele acha que nós queremos ouvir, é realmente aquilo que nós queremos ouvir. Normalmente ele não está enganado.
Com as pessoas que usam drogas, é a mesma coisa.
Nossa escuta é determinada pelas perspectivas teóricas com que operamos. Não há nenhuma separação entre teoria e prática, já que nossa prática é teoria. E nossas teorias constroem-se a partir de conceitos, de palavras. Quais são as nossas palavras? Em 2007, o Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, junto com outros parceiros, organizou um seminário chamado “Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas”. Por que “outras palavras”? Porque precisamos de novas práticas, o que se torna muito difícil quando operamos com velhas ferramentas, com velhos conceitos. Nossas ferramentas de trabalho são os conceitos, as idéias, as palavras, as possibilidades de escuta. São a partir de conceitos, de ideias, que preparamos nossos ouvidos para a escuta. Precisamos de conceitos que ampliem nossa escuta! Então, outras palavras, outros conceitos, outras ideias, são fundamentais.
Mas, que palavras são fundamentais para nós, militantes da Luta Antimanicomial? E eu falo de propósito em “militantes da Luta Antimanicomial” e não “militantes da Reforma Psiquiátrica”, porque eu faço questão de não confundir as duas coisas. A Luta Antimanicomial sempre vai ser mais potente do que a Reforma Psiquiátrica. A Reforma Psiquiátrica é importante, uma conquista de todos nós, mas no limite, ela é um conjunto de leis escritas num pedaço de papel, palavras produzidas pela potência da Luta Antimanicomial. A Reforma congela, em um determinado momento histórico, um conjunto de diretrizes. Mas a partir do momento que aquelas palavras deitaram no papel, o nosso pensamento militante já torna aquilo obsoleto.
Epidemia, dependência, sofrimento
Então, quais as nossas palavras? Quais os nossos conceitos? Quais as palavras a partir das quais pensamos o cuidado em qualquer serviço substitutivo, nas residências terapêuticas, nos CAPS’s, no Acompanhamento Terapêutico, na Redução de Danos, em cada um desses espaços e destas práticas, quais são as nossas palavras? Que palavras nos são caras, não no sentido de valor monetário, mas no sentido de “queridas”? É a idéia de pensar o crack como uma epidemia, ou como um problema social. O que fala mais para nós? O que bate mais no nosso coração? A idéia de uma epidemia com seus cinturões sanitários, ou a idéia de uma problemática social? E mais: se vamos usar a ideia de epidemia para nos referirmos ao fenômeno do crack, que palavra vamos usar para nos referir ao uso de álcool, que atinge a maioria da população brasileira, repercutindo em problemas para cerca de 15% das pessoas que bebem?
Que palavras fazem mais sentido para nós? É a idéia do uso de drogas como algo que pode concorrer para o sofrimento das pessoas, ou a idéia de uma dependência química? Que tipo de clínica nós, que acreditamos numa atenção psicossocial, podemos oferecer para uma dependência química. Se fosse uma dependência só química, uma clínica psicossocial não teria nenhuma contribuição a dar. Mas nós sabemos muito bem que o sofrimento destas pessoas está para muito além do que poderia ser descrito pela noção de dependência química. E se não sabemos, deveríamos saber! A dimensão química é apenas um dos aspectos desta complexa problemática, nem de longe o mais importante.
Claude Olievenstein nos diz da inseparabilidade entre droga, sujeito e contexto. No entanto, nós pegamos a droga, colocamos luz fosforescente em cima e esquecemos todo o resto, como se a droga fosse o único problema. E como a droga é o único problema, nós vamos chamar essa doença de uma dependência química, como se o químico pudesse explicar todo o sofrimento pelo qual essas pessoas passam. Como se pudéssemos separar dos aspectos químicos das substâncias, seus aspectos jurídicos, históricos, culturais, bem como os mitos e preconceitos que constituem as drogas, tanto quanto a composição química de cada uma delas. E mais: como se estes aspectos químicos não fossem - também eles - determinados politicamente, como no caso do crack. Então, qual a palavra que bate para nós lutadores da luta antimanicomial? É a dependência química ou a dimensão de sofrimento? O que tem mais a ver com tudo o que nós pensamos, com tudo o que nós acreditamos, com tudo o que nós sentimos?
Toda clínica é política
O que soa mais coerente para nós: a idéia de uma clínica que tem por objetivo a abstinência, que determina o objetivo final do tratamento antes mesmo da pessoa entrar pela porta, ou é uma clínica política. O que bate mais no nosso coração? A ideia de que o único problema daquela pessoa é a droga que ela usa, ou a ideia de que ela está envolta em uma sinergia de vulnerabilidades na qual a droga é apenas mais um elemento? Para ilustrar o que estou dizendo, gostaria de contar uma história que ouvi dos amigos do Programa de Redução de Danos de Santa Maria, no Rio Grande do Sul: houve uma vez em que eles encontraram um usuário de cocaína injetável, e deixaram com ele algumas seringas limpas. Haviam se afastado pouco do local quando perceberam a chegada de policiais que destruíram o material esterilizado que eles haviam entregado, além de agredirem o rapaz física e verbalmente. Cabe aqui a pergunta: que tipo de clínica poderia acolher o sofrimento deste rapaz? Uma clínica que vê o uso de droga como único problema poderia dar conta do que está ocorrendo neste caso? Ou será que temos aqui um típico exemplo de sofrimento produzido pela ação de agentes do Estado, orientados por um conjunto de opções em termos de políticas de drogas? E quando falamos de mães que tiveram seus filhos assassinados na estúpida guerra às drogas? O problema pode mesmo ser resumido na droga?
Lembro o exemplo do Grupo Tortura Nunca Mais. Preocupados com o sofrimento de pessoas que passaram pelo inferno da tortura nos anos de chumbo da Ditadura Militar, eles imaginaram um trabalho psicoterápico que pudesse contribuir para diminuir o sofrimento daquelas pessoas. Perceberam que a escuta psicológica tradicional, por mais importante que fosse, não conseguiria dar conta de todas as múltiplas dimensões de sofrimento vividas por aquelas pessoas que tinham sido torturadas, ou que perderam seus familiares para as forças de repressão. Começaram a perceber que para além daquela escuta, eles precisariam contribuir também para a mobilização das pessoas, incentivando-as, por exemplo, a lutar pelo reconhecimento dos crimes por parte do Estado. Clínica e política, ao mesmo tempo!
Há uma clínica política em se tratando de pessoas que usam álcool e outras drogas? Uma clínica que parte do pressuposto de que essas pessoas são criminosas, por exemplo, já seria uma clínica política; afinal, é uma opção política, tomar as pessoas que usam drogas tornadas ilícitas como criminosas, ou como vítimas de um construto jurídico-institucional. De um modo ou de outro, toda clínica é política. No DSM-IV, um dos fatores que define o diagnóstico para transtorno por uso de substância é o envolvimento com a lei. Ou seja: diante de eventuais modificações nas leis de drogas num sentido descriminalizante, veremos uma decisão política incidir sobre o diagnóstico!
Há mais exemplos de clínica política associada ao uso de drogas. Lembro dos casos em que existe uma determinação de “tratamento” compulsório, algo que foi abolido na lei brasileira sobre drogas sancionada em 2006, mas que persiste entre nós. Trata-se de uma clínica política? Claro que sim! A opção por abordagens que investem em autonomia e cuidado é tão política quanto aquelas que investem em disciplinamento e controle, e cada uma das opções tem suas técnicas, suas dinâmicas, seus “procedimentos”, levadas a cabo por bons ou maus profissionais. Portanto, não é de técnica que estamos falando, mas de política!
Acredito em uma clínica que toma partido. Penso, por exemplo, que qualquer dispositivo de criminalização do uso de drogas é algo arbitrário, e deve ser considerado como fator de vulnerabilidade. As prisões por uso de drogas são prisões políticas, que não contribuíram para melhorar a saúde e diminuir o sofrimento das pessoas durante todos estes anos. Uma pessoa que usa crack pode ter problemas com sua saúde. Trata-se de uma possibilidade, já que uma parcela importante das pessoas que usam crack faz um uso abusivo. Pois estas pessoas, diante de uma legislação proibitiva, passam a ter dois problemas: um é o problema com a saúde; outro é o problema com a lei. A lei, que teria por objetivo diminuir vulnerabilidades e melhorar a vida das pessoas, neste caso, amplia vulnerabilidades.
Acolhimento ou alta exigência?
Ainda pensando em palavras caras, penso no acolhimento em oposição à ideia de alta exigência. Com que noções nós temos mais afinidades? Com uma clínica exigente, disciplinadora, ou com uma clínica do acolhimento incondicional? Desde o início de sua constituição, uma das formas de definir a Redução de Danos é dizê-la uma abordagem de “baixa exigência”. Em resumo, evita-se ao máximo os obstáculos para inclusão do sujeito nas redes de cuidado, e busca-se facilitar seu ingresso nos programas e serviços de saúde, seu acesso às políticas públicas.
Acolher diz respeito à nossa capacidade de aceitar as diferentes formas de ser e estar no mundo, à nossa abertura diante da diversidade. Diz respeito à nossa capacidade de abrir os ouvidos para além dos discursos autorizados descritos anteriormente, e também à nossa abertura ao outro, inclusive naquilo que nos mobiliza de modo negativo, que nos incomoda, que nos desestabiliza. E por mais que o óbvio seja por vezes maçante, é preciso que se diga: acolher é muito mais que uma sistematização da recepção no serviço (ainda que isto seja algo de extrema importância); trata-se de uma postura ética diante da vida, do trabalho, do cuidado.
Lembro de uma característica na prática de certos monges budistas no Japão. Todos os dias, eles deixam o templo e buscam a cidade, onde mendigam comida oferecendo suas tigelas vazias. A comunidade lhes oferece algo de comer, normalmente arroz. No entanto, orienta a prática que não se deve separar a carne do arroz. Ou seja: acolhe-se à realidade com tudo o que ela nos oferece. Não se pode acolher o arroz e deixar a carne oferecida na tigela, assim como não podemos acolher apenas algumas certas características das pessoas com que estamos construindo um itinerário de cuidado, desprezando outras.
Também é preciso que se diga: acolher incondicionalmente não significa ser permissivo, ou “passar a mão na cabeça”, como se costuma dizer por aí. Isto seria fazer vista grossa, realizando pactos silenciosos pouco construtivos. Paulo Freire oferece muitas lições sobre as dificuldades em se lidar com os limites entre autoridade e autoritarismo. Lembro a história sobre uma família amiga da sua, cujos filhos eram infernais. Freire se chocava com a passividade daqueles pais: não esperava que eles usassem de violência, mas também não entendia o silêncio conivente diante da óbvia inadequação do comportamento dos meninos. Acolher incondicionalmente inclui o acolhimento de situações limite, problematizando-as, convidando à reflexão franca, aberta, horizontal.
Não se pode confundir uma abordagem acolhedora com uma abordagem exigente. Principalmente em tempos de crack, quando nos deparamos com tantos jovens vivendo em situações de extrema vulnerabilidade social, amargando diferentes situações de abandono e negligência por longos anos, em proporção às suas curtas vidas. Que mais podemos exigir destes jovens? Antes de qualquer coisa, é preciso acolhê-los, construir vínculos, relações de confiança. Relações horizontais, dialógicas. Francas e abertas.
Políticas de drogas e democracia participativa
Gostaria de concluir trazendo algo que considero uma das grandes contribuições da Educação Popular à clínica com pessoas que usam drogas. Esta contribuição, considero-a útil, tanto à prática dos trabalhadores de saúde, quanto à produção de políticas públicas. Trata-se de toda uma categoria de ensinamentos, presentes não apenas em Paulo Freire, mas também em Boaventura de Sousa Santos, no sentido da “valorização dos saberes negligenciados”. Neste sentido, nada mais potente do que a Redução de Danos, que vai lá no lugar (no “miolo do bagulho”, como se diz no Rio Grande do Sul), que vai lá dentro dialogar com as pessoas, que vai ouvir as práticas de cuidado que estas próprias pessoas construíram, e que vai ajudar a turbinar essas práticas. Ou seja: não apenas uma escuta que acolhe o sofrimento (quando isto é fundamental), mas que busca acolher a potência.
Atrelado a este movimento, emerge a própria valorização do protagonismo, com o incentivo à participação política das pessoas que usam drogas. E quando eu falo de “participação política das pessoas que usam drogas”, eu não estou falando apenas de uma participação política autorizada, para pegar o gancho daquilo que eu tinha dito antes, com respeito aos discursos autorizados (o derrotado e o vitorioso). Quando falo de participação política, não estou me referindo apenas àquilo que uma amiga do Instituto Murialdo chamava de “protagonismo de hora marcada”, ou seja: da cidadania de “chapa branca”, que se adéqua aos ditames da etiqueta diplomática, que doura a pílula, que organiza sua discursividade aos salamaleques governamentais (ainda que a demarcação de espaço nestes territórios seja absolutamente fundamental, como no caso da participação na elaboração e fiscalização de políticas públicas de saúde). Este espaço, ainda que não esteja solidamente instituído, vem sendo construído em algumas instâncias. A política nacional de DST/Aids, por exemplo, construída pelo Ministério da Saúde ao longo de anos, tem historicamente se esforçado para garantir a participação de pessoas que usam drogas, ainda que este esforço tenha sido de maior ou menor intensidade em momentos diferentes. A maioria dos CAPSad, de diferentes maneiras, busca a participação dos usuários por meio de assembléias e outros dispositivos de participação direta na gestão do serviço. Poderíamos também pensar em alguns conselhos municipais e estaduais de políticas sobre drogas, que em alguns poucos casos respeitam o direito de participação de pessoas que usam drogas nas discussões e deliberações. Lembro do Conselho Municipal de Política sobre Álcool e outras Drogas, de Recife, que tem assento para a Se Liga - Associação de Usuários de Álcool e outras drogas de Pernambuco. No Rio Grande do Sul, o Conselho Estadual de Entorpecentes também costumava ter espaço para um representante do segmento “usuários”.
No âmbito da definição de políticas públicas, como vemos, já existem pelo menos alguns espaços. No entanto, preciso dizer que isto, por mais importante que seja, não basta. No exato momento em que falo aqui, diversos coletivos organizados de pessoas que usam drogas estão tendo que lidar com a proibição de “Marchas da Maconha” por todo o país[1]. Ou seja: nós aceitamos um “protagonismo de hora marcada”, nos moldes daquilo que conseguimos suportar, mas não admitimos lidar com o movimento social em suas próprias dinâmicas. Isto – a autonomia dos movimentos sociais -, ainda é insuportável para setores da sociedade, cujos poderes são de tamanho somente igualável ao dos seus preconceitos.
Sobre isto, o movimento de luta contra a Aids nos traz um ensinamento, que devemos tomar, ressignificar e trazer para o campo do protagonismo político das pessoas que usam drogas. No início da epidemia de Aids, trabalhava-se com a noção de “grupo de risco”. Uma situação no mínimo curiosa: um dispositivo teórico para pensar o cuidado, que produzia estragos talvez tão grandes quanto o problema que pretendia atacar. Iatrogênico não? Ainda bem que o movimento de Aids conseguiu apontar o erro, e a noção de “grupo de risco” terminou substituída, inicialmente pela ideia de “comportamento de risco”, e por fim, pela noção de “vulnerabilidade”, tomada das Ciências Sociais. Neste processo, as populações que eram tidas como “grupo vítima preferencial” (para ficar com a expressão de Caetano Veloso), assumiram a posição de protagonistas, não mais como culpados, mas como atores centrais na elaboração de políticas para enfrentamento da Aids.
Neste ínterim, o que passou a acontecer? Prostitutas, gays, travestis e outras populações antes estigmatizadas começam a trazer novas questões para debate. Vem o pessoal do movimento gay e diz: “beleza, a gente quer participar da elaboração das políticas de Aids, mas só isso não basta. A gente quer discutir união civil, homofobia, uma série de outras questões, porque nossas vulnerabilidades não se resumem à Aids, e somente a discussão de saúde não dá conta de nossa pauta”.
Precisamos avançar nesse sentido também com as pessoas que usam drogas. Coletivos organizados se reúnem em 14 cidades brasileiras, sem nenhum financiamento, apenas motivados por sua própria vontade, e dizem: “queremos ganhar as ruas para discutir as leis sobre maconha”. Diante deste movimento, a resposta da sociedade tem sido (se não em todas, ao menos em muitas das cidades): “Não, você não pode. Esse espaço público de discussão política, construído na luta contra a Ditadura Militar; esse espaço tão importante para a Luta Antimanicomial e para o movimento social que lutou pelo SUS; este espaço, você, usuário de drogas, não tem direito de usar”.
É este o recado que nós temos passado para estas pessoas, no momento que proibimos a Marcha da Maconha: “Você não tem o direito de discutir política”. Não podemos aceitar isso. Não podemos obrigar estas pessoas a discutirem do jeito que achamos mais bonito, mais civilizado, mais conveniente. Se o que eles têm para nos trazer é uma marcha em defesa da legalização da maconha, o máximo que a sociedade poderia fazer seria debater o assunto, posicionando-se contra ou a favor. Outros grupos de ativistas, dedicados a outras lutas, poderiam dizer que não se trata de pauta relevante, e mesmo que houvesse discordâncias, tudo isto estaria bem. Tensões administráveis no âmbito das regras de convivência estabelecidas em uma sociedade realmente democrática. A única coisa que não se poderia ter feito, é justamente o que se fez: calar a boca destas pessoas, submetendo-as à mordaça. E tudo isto em tempos de paz e democracia.
Em Ciência Política, fala-se em duas dimensões da cidadania: uma dimensão passiva, cujo reconhecimento diz respeito aos direitos do cidadão, efetivados por meio de políticas públicas; uma dimensão ativa, cujo reconhecimento implica em respeito ao direito de livre organização e livre manifestação política. Em que pese a separação teórica, a história recente de nosso país demonstra que uma depende da outra. Em sua última entrevista, Paulo Freire falava de sua emoção diante das marchas promovidas pelo Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Dizia o mestre que aquela marcha comprovava o acerto de antigas teorias, que nos lembravam que as conquistas dos oprimidos sempre são precedidas de intensa mobilização e luta. Por outro lado, também está inscrito em nossa história recente, que quando se abre espaço para a participação popular na elaboração de políticas públicas, todos saem ganhando. Precisamos urgentemente admitir: na luta por melhores políticas para a questão, os preconceitos para com pessoas que usam drogas tem sido parte importante do problema, nunca das soluções.



[1] Esta fala foi realizada no dia 8 de maio de 2009. Naqueles dias, diversas Marchas da Maconha estavam sendo proibidas em diversas cidades do Brasil.
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