Um neo-higienismo pré-Copa do Mundo?

É paranoia minha, ou temos vivido um recrudescimento de políticas públicas de caráter higienista, verdadeiros processos de "limpeza urbana", com a retirada dos "indesejáveis" das ruas? Esta permanente precoupação com os usuários de crack que se reúnem nas "crackolândias", que é simplesmente um novo nome para uma reunião pública de pessoas surrupiadas em sua identidades, subtraídas em sua singularidade. São "mendigos", "pivetes", "cheiradores de cola"... Já tiveram tantos nomes ao longo da história, estes a quem hoje chamam "usuários de crack". Os nomes da exclusão (ou da "desfiliação" pra ficar com a definição do Castel em "Metamorfoses da questão social").

No início do ano, a visita do Sr. Barak Houssein Obama talvez tenha sido um grande ensaio do que nos espera com respeito à Copa do Mundo. As ruas foram "limpas", populações inteiras tiveram seus mais fundamentais direitos "flexibilizados". Aos que se permitiu algum movimento, foi apenas a partir de careografias muito bem delimitadas.

Paralelo às políticas de controle da vida, há as intervenções estruturais na própria materialidade da cidade. A construção da Transcarioca está sendo precedida de remoções em massa de uma imensa quantidade de pessoas, desalojadas de suas casas sem nenhuma garantia de indenização.

Agora, chegam notícias a respeito de internações compulsórias em massa. Instituem-se verdadeiras "carrocinhas de usuários de crack", em alusão às antigas carrocinhas de cachorro. O ex-secretário de saúde do Rio Grande do Sul, atual deputado federal, apresenta à Câmara projeto que visa regulamentar e simplificar os processos de internação compulsória, que passariam a ser decididas simplesmente por um médico, como uma espécie de "receita". Hoje, a internação compulsória já é regulamentada pela lei da Reforma Psiquiátrica, e necessita ser comunicada ao Ministério Público.

Paralelo à tudo isto, seguem as mortes de pessoas identificadas como "usuários de crack" em todo o país. Um verdadeiro genocídio.

A abertura de amplas avenidas, a remoção de casas populares, pessoas jogadas nas ruas, higienismo social, internação compulsória... Será que a Revolta da Vacina vai estourar? Sinto-me no início do século XX... Alguém viu o Oswaldo Cruz por aí?
Continue reading

Pedagogia do horror

Neste domingo, fui interpelado pela notícia de que o Conselho Nacional de Justiça está empenhado em divulgar as peças da campanha "Crack nem pensar", do Grupo RBS. Tema de minha dissertação de mestrado, a campanha é um triste exemplo de como é possível, por meio de uma inervenção desastrada, aumentar ainda mais o problema que deseja-se combater. Suas tristes imagens ampliam em muito o estigma e o preconceito sobre usuários de crack.

Enviei um breve texto manifestando minha indignação à ouvidoria do CNJ. Segue abaixo:

"Dedico-me ao trabalho preventivo e de recuperação de pessoas que usam drogas há pelo menos 10 anos. Antes disto, eu mesmo fui usuário abusivo por mais 10 anos. Ao todo, são 20 anos dedicados, de uma ou outra forma, ao universo das drogas. A campanha disparada pelo Grupo RBS é uma das piores iniciativas já desenvolvidas para lidar com este tema, tanto no Brasil quanto fora dele. Se estivéssemos falando de uma campanha de prevenção a Aids, nestes mesmos moldes, teríamos um escândalo de proporções internacionais, e o Brasil certamente teria suas orelhas puxadas, tanto por organismos internacionais, quanto pelo movimento social que se reúne em torno do tema da Aids. A campanha em questão, que agora é tristemente replicada pelo CNJ, é pródiga, não em prevenir o uso de crack, mas em ampliar o preconceito e o estigma, que são parte importante do problema. Insisto: aumentar o estigma e o preconceito sobre pessoas que usam crack não ajuda a diminuir o uso, pelo contrário: amplia a exclusão social, amplia a culpa, amplia a ojeriza que a sociedade sente por estas pessoas. Amplia o medo, a sensação de que estas pessoas são perigosas. Trata-se de uma das piores campanhas de prevenção ao uso de drogas já realizadas neste país. E o CNJ, ao invés de contribuir para a reflexão sobre os modos de se fazer prevenção, simplesmente amplia a potência de tal campanha. Triste, muito triste."
Continue reading

Roda sobre Redução de Danos em Boqueirão.

Ontem, dia 20 de junho, participei de uma roda sobre Redução de Danos na cidade de Boqueirão, Paraíba. A atividade fez parte do II Seminário de Formação Continuada em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, organizado pela Coordenação de Saúde Mental do Município de Boqueirão. Participaram ainda do evento a psicanalista Glacy Gorski, que é supervisora clínico-institucional da rede de Saúde Mental da cidade, e as professoras Carmem Tereza e Valéria Soares, do curso de Terapia ocupacional da UFPB. Boqueirão é uma cidade que investe forte em Saúde Mental, e que é conhecida pela seriedade com que desenvolvem projetos envolvendo trabalho e geração de renda.

Infelizmente, não me foi possível participar do seminário desde o início. Chegei um pouco atrasado para a roda da tarde, que estava marcada para as 14:30. Havia algo como 40 pessoas reunidas em uma roda: muitas agentes comunitárias de saúde, além de alguns profissionais de equipes de CAPS e PSF. Em uma roda de apresentação, foi possível perceber, rapidamente, que a grande maioria das presentes tinha algum tipo de problema relacionado ao uso de álcool e outras drogas dentro da família. Nos serviços, não era diferente: a maioria dos presentes percebe que estas questões estão chegando com maior frequência ao SUS.

Conversamos bastante sobre o conceito de Atenção integral a pessoas que usam álcool e outras drogas. O grande nó se resume, disse, a percebermos que as pessoas que usam álcool e outras drogas não se reusmem aos seus usos, mas que têm necessidades e demandas que se situam para muito além da drogas.

Ao final do seminário, a coordenadora de Saúde Mental de Boqueirão, Teresinha Brito, convidou-me a conhecer as duas iniciativas de Economia Solidária que tornaram esta uma cidade referência no estado da Paraíba. Inicialmente, conheci o galpão em torno do qual há uma série de hortas de flores, e também de uma série de hortifrutigranjeiros. Dali, fomos ao restaurante, no qual havia fila para compra de uma sopa que, ao que parece, já se tornou conhecida na cidade. A equipe contou-me que se vende algo entre 40 e 50 almoços por dia, além das sopas à noite.

Como já tinha feito um lanche ao final da roda de conversa, agradeci à sopa, mas aceitei de bom grado o cafezinho. Estava uma delícia!
Continue reading

Do seminário em Recife ao STF em Brasília

Acabou ontem o seminário "Drogas: cidadania, autonomia e tutela", promovido pelo Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco. Auditório lotado, cerca de 500 pessoas, salas de grupos abarrotadas, debates incendiados. Gente como Rafael Gil, Paulo Fraga, Sérgio Vidal, Marta Conte, Humberto Verona, Alda Roberto e tantos outros circularam por lá, garantindo a profundidade dos muitos debates, em torno de múltiplos temas relacionados às drogas e seus usos. Os psicólogos pernambucanos estão de parabéns!

A mesa de abertura teve representantes do Ministério Público, Secretaria Estadual de Saúde, Conselho Federal de Psicologia, Conselho Regional de Psicologia, Câmara de Vereadores, Rede Internúcleos da Luta Antimanicomial e Associação Pernambucana de Usuários e Ex-Usuários de Álcool e Outras Drogas. Abertura feita, coube a mim a conferência de abertura. O tema surgiu de uma fala feita pelo Marcus Vinícius durante reunião de articulação de uma rede de ativistas interessados no tema das drogas, realizada durante a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, articulando os temas: drogas; subjetividade; autonomia; tutela. Ciente disto, escrevi um e-mail ao Marcus pedindo algumas linhas de inspiração. Na resposta, generoso, Marcus disse que não havia criado nada de novo; apenas articulav temas que foram os mesmos articulados por Franco Basaglia para pensar as transformações em Trieste, e que até hoje inspiram o Movimento da Luta Antimanicomial.

Iniciei minha fala com uma justa homenagem ao Marcus, que sofreu um grave acidente no sábado, do qual já está se recuperando. Iniciei em Descartes, passei por Pinel, e falei de um filme belga chamado "O Ilusionista". Em um dado momento, uma das personagens é submetida a uma lobotomia, da qual resulta uma cicatriz na testa. Momentos depois, há uma cena em que esta personagem retira de sua testa a cicatriz, como fosse (e realmente era) um simples decalque, um recurso de maquiagem. Até contínuo, volta às mesmas características "loucas" de antes da cirurgia, diante do que sua família torna-se agressiva com ele. Como os usuários de drogas, a personagem do filme opta pela desrazão, e é por isto é amaldiçoada.

Terminei minha fala abordando o tema das Marchas da Maconha: podemos ser até mesmo contrários à legalização desta ou de qualquer outra droga, mas jamais poderemos sustentar a cassação do direito de livre manifestação dos participantes. Se cidadania faz bem à saúde, deveríamos mesmo incentivar a participação dos usuários de drogas neste tipo de debate.

- - -

No exato momento em que escrevo esta postagem, ouço o voto do Ministro Celso de Mello, em defesa da legalização da Marcha da Maconha. Diz o Ministro que é "perfeitamente lícita a manifestação a favor da descriminalização das drogas". Vivemos um momento histórico. A partir de agora, o espírito da Lei 11.343, que buscava escancaradamente a promoção de cidadania entre pessoas que usam drogas, começa a florescer em sua dimensão mais progressista. É o que espero...

- - -

A votação no STF já terminou há algumas horas. Por 8 votos a zero, foi definido que as Marchas da Maconha são atividades legítimas, não podendo ser consideradas como uma apologia ao crime ou ao consumo de drogas. Além disto, está plenamente autorizada a utilização da palavra "maconha", sem nenhuma necessidade de buscar outras denominações para as marchas.

Sem dúvida nenhuma, é um dia histórico para as políticas de drogas. A partir de agora, os usuários de drogas podem ser efetivamente respeitados em seu direito de participação na elaboração das políticas dirigidas justamente para eles mesmos. Isto não é apenas o mais correto do ponto de vista dos princípios democráticos, mas também resulta em políticas públicas de maior qualidade. Quem ganha é a sociedade como um todo.
Continue reading

Maratona de atividades

Nos últimos dez dias estive em três cidades diferentes, em atividades de formação para trabalhadores da Assistência Social, e em mais uma para um minicurso voltado à comunidade acadêmica. As atividades para a Assistência Social foram nas cidades de Recife, Bom Jardim e Igarassu. Nas duas primeiras, estive com as equipes dos CRAUDs (Centro de Acolhimento e Referência ao Usuário de Drogas). Com estes, foi meu terceiro encontro com a equipe do CRAUD Recife, e o segundo com o de Bom Jardim, onde eu sempre me supreendo com a presença não apenas dos técnicos, mas também de usuários do serviço.

Em Igarassu eu pude conversar com a equipe do CAUD (Centro de Atendimento ao Usuário de Drogas). Na chegada, a instituição lembra em muito uma Comunidade Terapêutica, mas há diferenças muito grandes. Não há limites com respeito ao uso de telefone, os familiares podem fazer visitas quando desejarem, e os usuários retornam para casa todo fim de semana. Há um forte investimento no reforço escolar, bem como oficinas de artesanato e capoeira. O estímulo à espiritualidade existe, mas sem indicação desta ou daquela religião.

Já a atividade voltada à comunidade acadêmcia foi realizada na cidade paraibana de Campina Grande, onde ministrei um minicurso de 12 horas, na UEPB (Universidade Estadual da Paraíba). O evento foi uma promoção do curso de Psicologia, e contou com a presença de dezenas de estudantes, além de conselheiros tutelares, professores universitários e profissionais do Consultório de Rua e do CAPSad local. Na pauta, as contribuições da Redução de Danos para o cuidado de pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas.
Continue reading