Sete Pontos Acerca do Debate das Comunidades Terapêuticas
O texto abaixo foi escrito por Marcelo Kimati, psiquiatra, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, consultor em Saúde Mental no Rio Grande do Norte e supervisor clínico-institucional. Está publicado no blog Saude com Dilma. Nele, Marcelo sistematiza o debate em torno do financiamento público das comunidades terapêuticas e sua inclusão na rede de assistência a pessoas que usam álcool e outras drogas, em sete pontos: legitimidade das CT's; regulação das vagas; impacto na rede e projetos terapêuticos; expansão da rede; regulamentação da ANVISA; impacto na política de saúde mental.
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Após o debate de sábado com o Coordenador de Saúde Mental do MS entendo que há muitos motivos para preocupações com o tema e gostaria de apontar para alguns deles.
A discussão acerca da incorporação das comunidades terapêuticas entre as estratégias da política de atenção integral a usuários de álcool e drogas vem evoluindo rapidamente nas últimas semanas. Diversas listas de e-mails ligados à saúde mental e redução de danos têm abordado o tema, o último encontro do colegiado de coordenadores de saúde mental discutiu junto ao Ministro da Saúde esta incorporação, movimentos sociais têm se reunido em torno deste debate, assim como conselhos de classe em especial o de psicologia. Encontro-me entre aqueles que são críticos a este processo, mas é importante dizer que estapostura se dá a despeito da plena legitimidade da equipe de saúde mental do Ministério da Saúde, sua reconhecida contribuição histórica e seu inequívoco alinhamento com o movimento da reforma psiquiátrica no país. Entretanto, após o debate de sábado com o Coordenador de Saúde Mental do MS entendo que há muitos motivos para preocupações com o tema e gostaria de apontar para alguns deles, com referência no conteúdo da fala do coordenador:
1) Legitimidade das comunidades terapêuticas- acho preocupante a naturalidade com que se tem pressuposto a legitimidade social destas instituições. Vem se dando, com isso,a naturalização da sua incorporação pelo Estado. Esta legitimidade se dá pelo número de usuários de drogas que foram auxiliados por elas? Pela sua conexão com movimentos religiosos também legítimos, pelo número de entidades que de fato apoiam seu funcionamento? É importante salientar que estas razões de legitimidade se estendem a diversos outros modelos institucionais, como, por exemplo, os maus hospitais psiquiátricos, apoiados por associações de classe, por grupos organizados representantes de hospitais e mesmo de usuários da saúde mental. E ainda assim defendemos há anos uma política que supere este modelo de atenção por entendermos que o HP não é promotor de autonomia, impõe uma anulação do sujeito entre outras coisas. Da mesma forma, entender que uma instituição é legítima não é o mesmo de inseri-la na rede de atenção mediante financiamento. A inserção e financiamento das CTsjustificada pelo argumento da legitimidade inverte uma lógica de produzir ofertas necessárias à rede para incorporar ofertas sem saber ao certo para o que elas servem ao SUS. Finalmente, iniciar um diálogo com estas instituições é muito diferente de incorporá-las à rede de atenção em saúde mental.
2) Regulação- Durante o debate, a regulação dos leitos de comunidades terapêuticas foi apontada como a principal estratégia para que elas não passem a ser a resposta universal para a questão do uso de drogas. Existe uma ampla experiência no país em relação à regulação de leitos psiquiátricos: em municípios que implantaram um modelo de atenção baseada em ações territoriais e numa rede substitutiva, as centrais de regulação são importantes dispositivos de articulação do funcionamento do sistema. Dentro deste papel, a regulação de leitos é a instânciaque polariza as maiores tensões da rede e de sua articulação. As vagas em hospitais psiquiátricos são cedidas apenas quando esgotadas as possibilidades da rede substitutiva e isto implica em negar solicitações de vagas, o que constitui uma ação não só técnica, mas política. O tensionamento se dá na medida em que a concepção de que o hospital psiquiátrico é o local de atendimento à crise ainda é hegemônica. No caso da rede de atenção a usuários de álcool e drogas o mesmo acontece; a percepção da necessidade do isolamento e promoção da abstinência em ambiente protegido para o tratamento predomina. Inclusive entre os reguladores e trabalhadores de saúde. Na imensa maioria dos casos, as centrais de regulação atuam como distribuidoras burocráticas de vagas em hospitais psiquiátricos e futuramente de comunidades terapêuticas. O papel técnico e político da regulaçãoé ainda muito frágilnum nível nacional porque não implica exclusivamente em qualificação, mas em alinhamento com a política de atenção em saúde mental referenciada na reforma psiquiátrica. Qualificar as centrais de regulação está longe de ser suficiente para garantir o uso apropriado (qual seria este?) de leitos de CT, especialmente se considerarmos que a regulação é e será feita por psiquiatras.
3) Atenção emRede e Projetos Terapêuticos- é temerária a possibilidade de inserir um dispositivo de atenção em álcool e drogas no SUS sem que tenhamos um perfil claro do seu usuário. Atualmente todos os serviços da rede AD têm seus modelos baseados em experiências que ocorreram em municípios do país e que tiveram a função de preencher lacunas assistenciais. As Casas de Acolhimento Transitório, os CAPS ad III, os SHRad e os consultórios de rua surgiram desta forma. A ideia desta rede é promover a atenção integral e pressupõe uma complementariedade dos serviços. Caso não seja definido o papel das CTs nesta rede, a prática diária nos municípios irá definir este papel. E este papel irá reproduzir a concepção hegemônica de que o cuidado em álcool e drogas deve ocorrercom isolamento do usuário. A rede substitutiva irá se consolidar como complementar e haverá filas de espera de internação em comunidades terapêuticas. O cenário pode parecer pessimista, mas está longe de ser fantasioso. Da mesma forma, o projeto terapêutico das comunidades é fechado, tem tempo de internação pré-definido, há uma programação para o primeiro, segundo, terceiro meses de tratamento, muitas tem ambulatórios para o pós-alta. As CTs não funcionam segundo demandas da rede, mas se entendem como um dispositivo completo.
4) Expansão da Rede- é fantasioso crer que tornar todos os CAPS ad em 24 hs seja viabilizado por uma decisão presidencial. Um serviço comunitário que funciona 24 hs demanda uma transformação da concepção de atenção em saúde mental no município, qualificação dos profissionais, articulação política local e negociação intensa com conselhos. Além disso, há uma demanda de revisão importante do financiamento dos CAPS III. Prova disso é a baixa velocidade de expansão dos CAPS III nos últimos 05 anos. É infinitamente mais fácil para um gestor municipal contratar uma comunidade terapêutica com recursos federais do que implantar um CAPS 24 hs, que irá demandar contratação, licitação, aluguel de imóvel, contrapartida municipal e enfrentamento do conselho de medicina que prega o caráter antiético destes serviços. Diminuir o impacto do financiamento de CTs com o argumento de que a rede de CAPS 24 hs irá triplicar é ingenuidade.
5) RDC 29- A RDC 29 é uma forma de dar legitimidade a um número gigantesco de instituições que se encontravam em situação de irregularidade pelo número de exigências da RDC 101. A demanda de parlamentares ligados às CTs era, há anos, deflexibilizar as exigências para que estas instituições pudessem ser regularizadas. E a mudança da RDC foi neste sentido:dar regularidade às instituições, e não para exigir qualidade do tratamento oferecido. O argumento de que existia um problema técnico na RDC 101 não justifica o fato desta discussão não ter sido levada para a sociedade, para os trabalhadores de saúde ou para os usuários do sistema.
6) Política de Saúde Mental- A reforma psiquiátrica é há anos criticada por propor uma política supostamente baseada num discurso ideológico, sem fundamentação técnica. Desta vez, não há justificativa técnica para o financiamento das comunidades terapêuticas. Não sabemos de quantos leitos são necessários, quem se beneficia disso, não há estudos que comprovem diminuição de mortalidade de pessoas que são submetidas a esta abordagem, não há estudos de promoção de abstinência em longo prazo no pós-alta fora de ambiente protegido. A demanda é política, e de uma política sabidamente não da saúde. A sustentação da incorporação das CTs ao SUS parece passar por um discurso de uma legitimidade que vem da força política de grupos que apoiam o modelo. Não há como ignorar que a força destes grupos não está na instituição que defendem, mas no caráter religioso que permeia todo o projeto institucional e que insere as comunidades numa ideologia (o “poder da fé, da vontade contra o vício”, etc) que agrega força no legislativo. É assustador perceber assim o que está pautando a política de atenção em álcool e drogas.
Finalmente, concordo com o Coordenador Nacional de Saúde Mental ao dizer que as CTs não podem ser ignoradas. Tampouco podemos fugir deste debate as considerando como dispositivos da assistência porque os usuários que as utilizam são os mesmos do Sistema Único de Saúde. Mas este debate tem de ser amplo e deve ter repercussões no âmbito da gestão federal. A portaria de financiamento das CTs deve ter seu lançamento adiado. Deve ser feito um grupo de trabalho no MS com participação dos movimentos para que o tema seja debatido. O Ministro da Saúde em seu discurso de posse afirmou que a questão de álcool e drogas teria uma ampla participação dos movimentos sociais a exemplo do que se deu em AIDS. Está na hora deste compromisso ser cobrado. Porque o custo do descumprimento será, seguramente, que estes movimentos deixarão de se sentir representados nesta gestão.
XIII Reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental
Nos dias 9 e 10 de agosto, aconteceu a XIII Reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental, composto pelos coordenadores estaduais de saúde mental, pelos coordenadores municipais das capitais e de algumas cidades (ainda não entendi muito bem o critério - mais informações neste link). Estive na reunião à convite da Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, para contribuir com as discussões em torno da política de atenção a usuários de álcool e outras drogas. O tema dominou os debates ao longo de toda a reunião.
Depois de uma manhã inicial meio morna, com atividades de abertura e repasse de informações, as atividades de debate e reflexão foram oficialmente disparadas na tarde do dia 9, a partir de uma mesa coordenada por Antonio Lancetti, que contou com a participação de Marcelo Niel (PROAD); Mari Lúcia Karam (LEAP) e Aldo Benvindo (SEDH). Nesta mesa, o tema central foi o deabte em torno das internações compulsórias que vêm sendo levadas à cabo nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Depois desta mesa, ocorreria uma mesa comigo, mais Pollyanna Pimentel (Prefeitura do Recife) e Rosemeier Aparecida (Prefeitura de Belo Horizonte). No entanto, no momento em que a mesa iria começar, chegou ao evento o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha. A programação foi flexibilizada, e o Ministro foi convidado à mesa para conversar com o colegiado.
Abriu-se uma rodada para que cinco pessoas fizessem perguntas ao Ministro. Todas o inquiriam a respeito das novas diretrizes para o cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas (especialmente o crack, por certo...), que incluem às Comunidades Terapêuticas como parte integrante das redes. Feitas as perguntas, o Ministro começou a tecer sua resposta, mas parecia tergiversar, demorando-se por demais em aspectos inciais que pareciam por vezes preparar uma desculpa pelo que viria depois (ao menos assim me pareceu).
De repente, alguém na platéia quebra o protocolo, e apresenta o inesperado. Uma das gestoras de Saúde Mental presentes ao evento levanta de seu lugar e interpela o Ministro Alexandre Padilha. Diz que precisamos ter clareza quanto aos rumos da política. Até aquele momento, não estava claro o que estava sendo defendido pelo Governo Federal. Seria preciso muito mais clareza do Ministro, para que os gestores não saíssem da reunião com mensagens dúbias, com diretrizes precárias.
O que seguiu-se não será esquecido tão cedo. A reunião tomou um novo rumo, totalmente inesperado. A mesa, que começou por votas das 16:30, só viria a terminar às 22 horas. Ninguém arredava o pé - nem do salão, nem de suas convicções. O Ministro da Saúde, e também o Coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, tiveram de ouvir de todos os presentes - todos, sem excessão - que discordavam veementemente da opção de incluir as Comunidades Terapêuticas nas redes de atenção em saúde, e no próprio SUS. Segundo os coordenadores municipais e estaduais presentes à reunião, as CT's, em sua grande maioria, não apresentam-se como parceriras confiáveis na contrução do cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas. Há inúmeras denúncias de tortura e maus tratos, ausência de condições físicas e sanitárias, proselitismo religioso, cárcere privado, ausência de qualquer tipo de projeto terapêutico. Por fim, um dos pontos que assumidamente incomodou o Ministro Padilha: a investimento, por parte do Governo Federal, em dispositivos de cuidado deslocados da lógica territorial, representa uma séria contradição com os investimentos do Ministério da Saúde na lógica da Regição de Saúde, defendida com muita energia pelo Ministro Padilha nesta mesma reunião. Foi este o recado do Ministro, às 22 horas daquele dia: que a menção à possibilidade enfraquecimento dos investimentos territoriais o havia sensibilizado profundamente.
A reunião ainda seguiria no dia 10. Na manhã do dia 11, teríamos a cerimônia de lançamento do relatório da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial, e na tarde, no Senado Federal, atividade organizada pelo senador Humberto Costa (PT/PE) referente aos 10 anos de aprovação da Lei 10.216. Voltarei a estes dois outros momentos. Por hora, cabe esta reflexão: a totalidade dos coordenadores municipais e estaduais e Saúde Mental presentes às XIII Reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental são contrários à inclusão das comunidades terapêuticas nas redes de atenção a usuários de álcool e outras drogas, e também a utilização de internações compulsórias como dispositivo de proteção.
Depois de uma manhã inicial meio morna, com atividades de abertura e repasse de informações, as atividades de debate e reflexão foram oficialmente disparadas na tarde do dia 9, a partir de uma mesa coordenada por Antonio Lancetti, que contou com a participação de Marcelo Niel (PROAD); Mari Lúcia Karam (LEAP) e Aldo Benvindo (SEDH). Nesta mesa, o tema central foi o deabte em torno das internações compulsórias que vêm sendo levadas à cabo nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Depois desta mesa, ocorreria uma mesa comigo, mais Pollyanna Pimentel (Prefeitura do Recife) e Rosemeier Aparecida (Prefeitura de Belo Horizonte). No entanto, no momento em que a mesa iria começar, chegou ao evento o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha. A programação foi flexibilizada, e o Ministro foi convidado à mesa para conversar com o colegiado.
Abriu-se uma rodada para que cinco pessoas fizessem perguntas ao Ministro. Todas o inquiriam a respeito das novas diretrizes para o cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas (especialmente o crack, por certo...), que incluem às Comunidades Terapêuticas como parte integrante das redes. Feitas as perguntas, o Ministro começou a tecer sua resposta, mas parecia tergiversar, demorando-se por demais em aspectos inciais que pareciam por vezes preparar uma desculpa pelo que viria depois (ao menos assim me pareceu).
De repente, alguém na platéia quebra o protocolo, e apresenta o inesperado. Uma das gestoras de Saúde Mental presentes ao evento levanta de seu lugar e interpela o Ministro Alexandre Padilha. Diz que precisamos ter clareza quanto aos rumos da política. Até aquele momento, não estava claro o que estava sendo defendido pelo Governo Federal. Seria preciso muito mais clareza do Ministro, para que os gestores não saíssem da reunião com mensagens dúbias, com diretrizes precárias.
O que seguiu-se não será esquecido tão cedo. A reunião tomou um novo rumo, totalmente inesperado. A mesa, que começou por votas das 16:30, só viria a terminar às 22 horas. Ninguém arredava o pé - nem do salão, nem de suas convicções. O Ministro da Saúde, e também o Coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, tiveram de ouvir de todos os presentes - todos, sem excessão - que discordavam veementemente da opção de incluir as Comunidades Terapêuticas nas redes de atenção em saúde, e no próprio SUS. Segundo os coordenadores municipais e estaduais presentes à reunião, as CT's, em sua grande maioria, não apresentam-se como parceriras confiáveis na contrução do cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas. Há inúmeras denúncias de tortura e maus tratos, ausência de condições físicas e sanitárias, proselitismo religioso, cárcere privado, ausência de qualquer tipo de projeto terapêutico. Por fim, um dos pontos que assumidamente incomodou o Ministro Padilha: a investimento, por parte do Governo Federal, em dispositivos de cuidado deslocados da lógica territorial, representa uma séria contradição com os investimentos do Ministério da Saúde na lógica da Regição de Saúde, defendida com muita energia pelo Ministro Padilha nesta mesma reunião. Foi este o recado do Ministro, às 22 horas daquele dia: que a menção à possibilidade enfraquecimento dos investimentos territoriais o havia sensibilizado profundamente.
A reunião ainda seguiria no dia 10. Na manhã do dia 11, teríamos a cerimônia de lançamento do relatório da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial, e na tarde, no Senado Federal, atividade organizada pelo senador Humberto Costa (PT/PE) referente aos 10 anos de aprovação da Lei 10.216. Voltarei a estes dois outros momentos. Por hora, cabe esta reflexão: a totalidade dos coordenadores municipais e estaduais e Saúde Mental presentes às XIII Reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental são contrários à inclusão das comunidades terapêuticas nas redes de atenção a usuários de álcool e outras drogas, e também a utilização de internações compulsórias como dispositivo de proteção.
Política de drogas e Brasil contemporâneo: 4 pontos
Semana passada estive em Betim, ministrando a aula de abertura do Centro de Referência em Crack e Outras Drogas da UFMG. Ali, pude desenvolver com um pouco mais de consistência um raciocínio que tenho tentado construir, acerca da articulação de 4 elementos que considero extremamente importantes na análise da conjuntura em termos de políticas de drogas: 1. Campanhas de prevenção ao crack; 2. A "epidemia do crack"; 3. Comunidades terapêuticas; 4. Internações conulsórias.
1. Campanhas de prevenção ao crack
Para quem tem compartilhado comigo os estudos que fiz ao longo do meu mestrado recém concluído, nada de novo. O fato é que entendo o atual modelo de campanhas de prevenção ao crack com que temos operado como parte do problema, e não da solução. Este modelo de "pedagogia do horror" tem transmitido a ideia de que os usuários de crack são zumbis, mortos vivos extremamente perigosos, capazes de prejudicar às pessoas que os amam. Os modelos que representam os usuários nestas campanhas, despertam sensações que vão do medo ao nojo. Parecem saídos de filmes de terror tipo "B".
2. "Epidemia do crack"
"Epidemia" é um conceito teórico, e os conceitos, sabe-se, são formas de ver. De acordo com o modo como vemos, agimos. Nossas ações diante de uma determinada situação têm tudo a ver com o modo como a vemos. O conceito de "epidemia" é uma ferramenta de trabalho preciosa para o planejamento e a gestão em Saúde Coletiva. Porém, pode-se falar de "epidemia" quando nos referimos a um comportamento? Associada à ideia de que os usuários de crack são mortos-vivos, a noção de "epidemia do crack" é fértil em informar à sociedade de que vivemos uma epidemia de zumbis. Além disto, uma epidemia é um fenômenos com início, meio e fim, que exige investimento do Estado ate que o problema se estabilize. Ou seja: assim que a "epidemia do crack" passar, seria possível retirar os investimentos que estão sendo ampliados agora (sem nenhum critério, diga-se de passagem). Eis o que se produz com a recente mudança na nomenclatura das políticas, que deixam de falar em "álcool e outras drogas" (o que apontaria para uma necessária ampliação de recursos, em caráter permanente), para falar em "crack e outras drogas" (indicando que estes recursos poderiam ser realocados, assim que cesse a epidemia).
3. Comunidades terapêuticas
Diante de uma "epidemia de zumbis", há que se mobilizar todos os recursos, "em defesa da sociedade" para citar o nome de um famoso curso que Foucault ministrou nos anos 70, em Paris, justamente para dar conta das políticas de controle da vida promovidas na modernidade, para retirar do convívio social àqueles considerados como perigosos. Neste sentido, constituem-se políticas que têm por objetivo não cuidar de quem se acolhe, mas proteger às pessoas que ficaram do lado de fora (seja dos hospícios, dos leprosários ou das comunidades terapêuticas). Num contexto em que o campo de Saúde Mental Coletiva se recusa a operar conforme lógicas exigidas pola Justiça Criminal e pela "opinião publicada", a sociedade reclama a participação de novas instâncias que dêem conta do recado. As comunidades terapêuticas - mesmo as boas - são chamadas cumprir este papel, que dele gostem, ou não. Como se não bastasse, uma nova portaria da ANVISA diz que não é mais necessário ser profissional de saúde para coordenar CT's: basta ter curso superior. Atenção, maestros de fanfarra recentemente formados pela UFPB: vocês podem ser coordenadores de Comunidades Terapêuticas.
4. Internações compulsórias
Se os usuários de crack são apresentados como monstros, e se a noção de epidemia amplia esta presença monstruosa aos milhões, não bastará a abertura de vagas nos "leprosários do século XXI", que foi a definição dada às comunidades terapêuticas por um religioso que se dedica ao trabalho em uma destas instituições. Afinal, é fácil escapar às CT's, sendo que a maioria delas exige voluntariedade da parte do interno em recuperação. Sendo assim, será preciso reativar os mais anacrônicos processos de controle dos corpos, constituindo-se verdadeiras "corrocinhas de drogados", numa alusão às clássicas "carrocinhas de cachorros". Em Rio e São Paulo, já é possível ver cenas dantescas, em que agentes sociais perseguem moradores de rua e outros indesejáveis. No congresso nacional, o deputado gaúcho Osmar Terra apresentou projeto de lei para flexibilizar as normas que hoje regulam este tipo de prática, restrita aos casos em que há risco de vida do próprio usuário, ou de terceiros.
5. Mas, o que falta?
Será que falta algo pra entendermos melhor a articulação que proponho aqui? É certo que ela é arbitrária, e não contempla todos os elementos presentes para esta reflexão. Mas, a partir destes quatro tópicos, pontuo: tudo isto ocorre em tempos de preparação para Copa do Mundo, e durante um Governo Federal que é escravo de suas alianças com os setores mais reacionários do pensamento cristão contemporâneo.
Amanhã, participarei de uma mesa na reunião do Colegiado Nacional de Saúde Mental. Não pretendo apresentar uma fala como esta que fiz em Betim... Mas minhas preocupações têm passado por aí.
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